Liturgia Pagã

 

«Grão a grão...»

33º Domingo do Tempo Comum (ano A)

1ª leitura: Livro dos Provérbios, 31, 10-13. 19-20. 30-31

2ª leitura:  Carta de S. Paulo aos Tessalonicenses, 5, 1-6

Evangelho: S. Mateus, 25, 14-30

           

É uma questão de persistência: nasça-se rico ou pobre, só juntando pacientemente o fruto do trabalho e cultivando a arte de chamar a atenção dos outros é que garantimos o nosso capital.

A passagem de hoje do evangelho é bem clara sobre este assunto. Olhando também para a extraordinária e bem sucedida mulher trabalhadora, da 1ª leitura, bem que poderia ser um texto defensor da pouco recomendável «ética do sucesso» – conceito que afinal não garante a salvação nem neste mundo nem no outro, e muitas vezes contradiz a exigência cristã de preocupação pelo bem comum e por «se fazer próximo» das vidas que se cruzam com a nossa.

De facto, muita gente conquista o sucesso provocando o insucesso dos outros ou acha que, para ser alguém, deve tratar os outros como gente inferior, incapaz de tomar ou partilhar decisões. (Mas é oportuno lembrar que Max Weber, no seu estudo «A ética protestante e o espírito do capitalismo», refere como a religião cristã, na sua vertente protestante, terá impulsionado a justificação da luta pelo ganho económico, juntamente com profunda exigência de justiça social – em oposição à tradição católica, ligada a um certo alheamento das coisas deste mundo).

Querer-se comparar é uma tendência humana, que podemos usar tanto para o bem como para o mal. E também é verdade que muita gente se sente infeliz porque acha que não tem tantos talentos como os outros e, por inveja ou preguiça, nem faz render o que tem (que até costuma ser mais do que o próprio pensa) nem deixa que os outros «façam bom negócio», chegando a destruir o que de bom foi feito.

Ao contrário do que se costuma dizer, ninguém nasce igual e ninguém pode ter as mesmas oportunidades na vida. No espírito da parábola de hoje, apenas somos iguais na obrigação de não deixar a conta a zero (e não há «contas-ordenado» para ninguém!...).

Cada qual tem a responsabilidade de não esconder a sua própria luz (Mateus, 5, 14-16). Se nos submetermos ao império dos «ratings», podemos falar de luzes fortes e luzes fracas. Mas Jesus mais uma vez sublinha que o bem e o mal procedem das intenções e não dos critérios superficiais de classificação. O cenário luminoso da humanidade só é possível tirando partido de todas as luzes, com a maior variedade possível de intensidade, cores e ritmo.

Aquelas «luzes», que disfarçam a ganância sob a capa mal fabricada da concorrência e competitividade, e que não hesitam em eliminar outras luzes – a esses, «melhor fora que lhes atassem uma pedra ao pescoço e os lançassem ao mar» (Marcos, 9, 42).

Grão a grão, vamos juntando conhecimentos e exames de consciência sobre a injustiça das relações humanas. Falamos do «direito das minorias» ou dos «marginalizados» (que são maiorias…) e ao menos achamos bem que os outros tomem medidas para proteger esses direitos.

A 1ª leitura, traçando o retrato da «mulher de valor», obriga-nos a reflectir sobre as potencialidades próprias dos sexos masculino e feminino – e poucas vezes se tem coragem para aclamar o sinal positivo desta «bipolaridade humana», simbolizada e presente em níveis diversos em cada ser humano. Um tema particularmente distorcido em círculos religiosos mais fechados ou partidários de um cenário pouco favorável ao esplendor da face feminina do ser humano – «criado à imagem de Deus como macho e fêmea» (Génesis, 1, 27).

A compreensível revolta perante o mal, e sobretudo a tristeza que nos causa, leva-nos por vezes a cruzar os braços, alegando que não depende de nós mudar o mundo e que Deus lá está para julgar. É verdade que a carta de S. Paulo hoje citada, marcada pela crença de que «o fim» estava próximo, não incita muito ao trabalho pela transformação do mundo (com outros textos paralelos, favorece o mencionado passivismo e sujeição acrítica ao poder, em que as religiões podem cair).

Ora não basta cumprir bem as funções que nos são atribuídas: temos o dever de as avaliar quanto à justiça e importância para o progresso da humanidade – de toda a humanidade, ricos e pobres, no presente e nas gerações futuras. Como Jesus sublinha no evangelho, não nos podemos desculpar dizendo que temos «pouco talento» e que, se o mundo vai mal, a culpa é de quem o criou.

Na opinião de muitos peritos, a parábola de hoje é mais um exemplo do «ataque» de Jesus à inércia religiosa – a uma espécie de avareza fanática que enterra o tesouro para que fique sempre na mesma, impedindo novas aplicações. É a estes que será retirado o próprio tesouro que lhes foi confiado – e entregue a quem se esforça por «fazer mais», com a ajuda do «Senhor dos talentos».

«Grão a grão…», «Deus ajuda a quem se ajuda»…

13-11-2011


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