3º Domingo da Páscoa (ano A)
1ª leitura: Actos dos Apóstolos, 2, 22-33
2ª leitura: 1ª Carta de S. Pedro, 1, 17-21
Evangelho: S. Lucas, 24, 13-35
Com
que emoção, S. Pedro nos quer apresentar este retrato! (1ª leitura).
Note-se que já no tempo dele, vai para dois mil anos, muitas das
figuras e rostos teriam sido criativamente elaborados – até os
historiadores mais «objectivos» se preocupavam com iniciar os
leitores no pouco ou nada visível mundo dos sentimentos e do
sobrenatural envolvente. (Mas o que são as interpretações actuais
sobre uma série de «factos»?).
S.
Pedro está de pé, com os onze apóstolos (Matias já tinha ocupado o
lugar de Judas), e certamente outros discípulos, entre os quais
deveria ser notável «a quota» feminina. A um cantinho do grupo, os
dois discípulos de Emaús, de mochila e bordão, com o ar
sorridentemente atordoado por terem viajado com Jesus sem serem
capazes de o reconhecer.
Espantosamente, a figura principal aparece tão colorida e endeusada
que é mesmo preciso que nos digam que se trata de Jesus. Com efeito,
e logo desde os primeiros tempos, é apresentado muitas vezes com a
nobreza de um rei superior aos outros reis, «sentado à direita de
Deus», o «Senhor dos Senhores». A arte e a própria teologia (quando
se perde em demasiadas especulações), mesmo se com as melhores
intenções, tornaram difícil descobrir a figura simples, de
autoridade natural, e tão dedicada à causa da humanidade, que soube
«amar até ao extremo» (João, 13, 1).
S.
Pedro retocou a imagem de Jesus com a paleta mística do Antigo
Testamento – no que tinha mais do que razão, pois não se compreende
a linguagem e simbolismo dos livros do Novo Testamento sem o
conhecimento básico do meio cultural em que Jesus nasceu.
Uma
ideia chave na religião judaico-cristã é a de «desígnio de Deus»:
que não se pode distinguir do processo temporal do universo, e
particularmente do «universo espiritual» – o universo dos seres
capazes de liberdade. É dentro deste desígnio que todos os seres são
chamados à existência e particularmente à vida.
Lucas
põe na boca de S. Pedro uma releitura do salmo 16 (8-11) atribuído
ao rei David. Aplica-o a Jesus Cristo, o perfeito «fiel de Deus»,
que será liberto do sofrimento e da morte. Note-se que o
«Messianismo», no sentido geral de um futuro esperançoso, em que a
humanidade acabará por sair vitoriosa da sua constante luta contra o
mal, é logo formulado no Livro do Génesis (3,15), sob a imagem da
descendência de Adão que esmaga a cabeça da serpente. Quando se
instituiu a realeza, o rei passou a ser imagem viva da justiça de
Deus – David e seu filho Salomão terão um descendente «salvador» com
poderes sobre-humanos (Isaías, 9, 5), mas humilde, portador de paz,
e «rei» só na medida em que defende o «reino de Deus».
A este
homem tão livre e coerente na defesa duma vida mais autêntica e
justa para todos, que aceitou sofrer e morrer, como consequência das
suas posições em palavras e actos, deu-lhe Deus «a Glória» junto de
si – o que, na tradição cristã, significa que «Deus ressuscitou
Jesus» (1ª e 2ª leituras).
A
«Glória de Deus» é pois a Vida perfeita – uma realidade impossível
de retratar. Por esta e outras razões, não podemos idolatrar os
retratos e muito menos ver nelas «modelos» rígidos para o futuro – o
que os tornaria ridículos. Os «retratos de família», sejam eles
quais forem, mas de modo especial os da «família de Jesus» (formada
por todos aqueles que meditam sobre o que é «a vontade de Deus» –
Mateus, 12,50), têm lugar especial à volta da lareira – onde arde
sem descanso o fogo da vida, alimentado pelos sentimentos de carinho
e harmonizando passado, presente e futuro. Se o passado nos fala, é
para nos ajudar a ser livres do que está na moda ou do que agrada a
quem detém o poder; a saber detectar o bem no meio do mal, e a
ganhar experiência para eliminar as cores falsas da realidade.
Para maior consolação, se descobrirmos, entre a confusão dos que se
fizeram ao retrato, uns tantos vultos de discípulos mal amanhados –
é porque fomos retratados na perfeição… |