Liturgia Pagã

 

Uma família «sagrada»?

Domingo da Sagrada Família (ano A)

1ª leitura: Livro de Ben-Sirá, 3, 3-7.14-17

2ª leitura: Carta de S. Paulo aos Colossenses, 3, 12-21

Evangelho: S. Mateus, 2,13-15.29-23

 

Há quem defina o casamento como «um contínuo perdão».

Talvez seja o que, na festa litúrgica de hoje, se deva pôr mais em relevo: a estranheza do outro, tanto maior quanto mais se afirma a dimensão “sobrenatural” no projecto de cada qual. Projectos que não são fáceis de partilhar, não há palavras capazes para os dizer, e até se vive sob o medo de algo desconhecido – será bom, será mau? – que possa acontecer. Várias vezes, o mau jeito da comunicação deixa-nos ofendidos, mesmo quando temos a melhor das intenções.

Perdão é superação. Não porque alguém seja superior ao outro, mas porque se entra num nível superior de relação: perdemos o medo a que cada um de nós tenha uma maneira diferente de «doar». E assim todos «doamos» o melhor que podemos – por vezes o ouro mais puro, embora encoberto por um mau jeito ou pelo suor das mãos… Descobrimos que nem honras nem ninharias podem corromper o nível penosamente adquirido da nossa vida em comum.

O casamento é uma aposta continuamente livre de transformar os conflitos em força geradora de futura humanidade, com o optimismo de que o futuro traz sempre o bem, por mais escondido que pareça entre as malhas da vida. A todo o ser humano, qualquer que seja o estilo de vida escolhido, compete não ser um mero ocupante do palco da vida, mudo e quedo (quando não activamente destruidor): quem entra no palco, para falar e agir a seguir à gente, precisa de uma «deixa» bem clara e estimulante.

Ben-Sirá descreve a maravilha de uma família em que o grande objectivo é transmitir vida feliz – uma vida de paciência activa e frutificante, dando aos outros bases sólidas para a expansão dos anseios próprios. Uma família onde, com naturalidade, a própria morte tem lugar como incitadora do aproveitamento da vida e como um momento especial de expressão do nosso carinho.       

S. Paulo sublinha o exercício do perdão, que nos fortalece para toda a vida e permite o funcionamento positivo da sociedade, lembrando também que este amor sem medo é matriz de instrução, de conselho (e repreensão) e de união sensível com a «fonte da Vida». Faz-se moralista à maneira dele – como qualquer um de nós. Precisamos de muita sabedoria e bom senso, sem ficarmos presos aos preconceitos, para interpretar os valores fundamentais na linguagem mais correcta e que melhor responde aos problemas do tempo e do tipo de sociedade em que vivemos.

S. Mateus continua com “historinhas piedosas” que reflectem a ternura e admiração pela figura de Jesus Cristo. Ao tempo (e ainda hoje), só se diziam coisas extraordinárias acerca do começo de vida de alguém que por vários motivos é olhado como herói, líder, homem bom e homem de Deus… E o que dizer de Jesus, que mereceu o título de «filho de Deus»?

            Aproveita estas histórias, bem ao estilo popular, para sublinhar como um homem bom é facilmente rejeitado e perseguido – o que torna mais admirável a permanência do espírito de Jesus pelos milénios fora, «ressurgindo» com uma força e atracção inquestionáveis. E perseguido desde o nascimento, porque havia poderosos corruptos que já tinham medo do que ele viesse a ser.    

A vida de família espelha as dúvidas entre todos os seus membros, os silêncios dolorosos, as aparentes infidelidades ou jogos escondidos… e não faltaram de certeza, entre os pais de Jesus, e com o próprio Jesus, discussões e desentendimentos, que só foram superados porque o travesseiro é bom conselheiro; e porque eles sabiam bem que o mais difícil é «aturar» quem vive a nosso lado… e que, para este amor resistir e se tornar fecundo e libertador, precisa de se enraizar activamente no «rochedo da vida», no Deus que dá força e prazer ao nosso amor.         

Uma família «sagrada»? Há quem veja apenas uma família de nível especial – correndo o risco de negar o fundamental da «encarnação»: Deus revelou-se num homem como todos os outros, com uma família como as nossas. Mais propriamente se diria uma família «consagrada»: na medida em que os seus elementos se «consagraram» a lutar por uma vida melhor, a lutar por que a humanidade se saiba orientar pelos valores que lhe são vitais, apesar de incompreensões, dúvidas e momentos de perigo.

Assim, as nossas famílias também podem ser «consagradas».

26-12-2010


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