Domingo XVIII do tempo comum (ano
C)
1ª leitura: Livro de Coelet, 1, 2;
2, 21-23
2ª leitura: carta aos Colossenses,
3, 1-5, 9-11
Evangelho: S. Lucas, 12, 13-21
A 1ª leitura tornou célebre um
provérbio, que ficou inalterado pelos séculos fora: «Vaidade das
vaidades, tudo vaidade». O termo «vaidade» traduz aqui o sentido de
“perecedoiro, ilusório, vão”. E «vaidade das vaidades» é um
superlativo: o conjunto da frase significaria «tudo neste mundo é
fugaz e enganador», e o autor acrescenta que até os pensamentos mais
profundos só aumentam a dor de quem pensa e também eles morrem com o
tempo. Estamos perante um autor desiludido, revoltado e por fim
tristemente resignado perante a falta de sentido da vida.
O impreciso termo hebraico
Qohelet designa alguém relacionado com uma assembleia (como um
mestre), que terá vivido 400 ou 300 anos antes de Cristo.
A tradução grega do livro de
Coelet usa, para «vaidade», um termo que designa sobretudo o que é
falacioso, fictício, ineficaz, sem objectivo… e outros sentidos
afins, que encontramos nas célebres tragédias gregas (entre elas,
«Antígona»). Mas o vocabulário hebreu, para designar este mundo de
aparências, de enganos e desenganos, de mentira e de ligeireza… usa
pelo menos seis termos totalmente diferentes, consoante o sentido a
vincar no contexto. Coelet usa sobretudo o termo hebel, cujo
significado directo é suspiro, vapor, nulidade. A futilidade da vida
lê-se em muitos livros da Bíblia, mas geralmente Deus acaba por
surgir como salvador. Mas Coelet como que repisa as palavras do
profeta Malaquias (3,14): «Que interesse pode haver em servir Deus,
guardar os seus preceitos e não tirar o maior gozo possível da
vida?» (Note-se que Coelet viveu numa época “morna”, como nós
podemos viver, em que o poder e a riqueza estavam nas mãos de quem
não tinha educação suficiente para promover uma aplicação justa).
Entre crentes e não crentes, o
livro de Coelet suscita uma certa aversão, tão sombrio é o cenário
que apresenta, e logo em contraste com a frescura e exuberância do
livro precedente – o Cântico dos Cânticos. Começou mesmo por
não ser bem aceite na Bíblia, mas, acabando por ser incluído,
garante uma visão mais realista da situação humana: a nossa relação
com Deus inclui a indignação e tristeza pelo mal que existe e pelo
pouco que somos.
À medida que o género humano sobe
na escala da educação, tem que aprender a ler a Bíblia e outros
escritos religiosos de um modo cada vez mais profundo: a religião e
muito menos Deus podem ser vistos como aconchegador regaço de um
«doce não fazer nada». A consolação que nos trazem (e Jesus bem a
pediu durante a sua vida e sobretudo na sua «paixão») será o
resultado de uma relação interactiva com Deus – um Deus que
importuna e ainda por cima se esconde.
O livro de Coelet passa um
autêntico “cartão de estúpido” a quem se apega exageradamente às
coisas passageiras. São tentadoras, como é tentador o dinheiro, o
poder e uma vida de prazer. Mas tudo passa muito depressa – embora a
gente deva aproveitar os momentos gostosos da vida.
Por outro lado, parece que só as
pessoas que não se importam a sério com a justiça é que têm uma vida
regalada… Trata-se de gente (diz a Bíblia noutros lugares), que vive
e morre como animais de engorda para abate. Mas não é verdade que o
sofrimento é algo para fugir, e a morte é apenas um fenómeno que se
passa com os outros?
Pessoas boas ou más, ricas ou
pobres, ignorantes ou letradas, sábias ou doidivanas… todos voltam
igualmente a ser pó. Nem sabemos se os nossos filhos ou as novas
gerações aprenderão alguma coisa connosco. E depois de nós,
continuarão os enganos e o ser humano nunca deixará de ser «uma
paixão inútil»…
Contudo, Coelet não desiste de
viver: vale sempre a pena fazer o que achamos mais acertado. O mal
está naqueles para quem todo o gozo é roubar as várias formas de
poder (político, religioso, financeiro… – que se misturam), agindo
como “deuses” que regem e “tramam” o destino dos que ficaram atrás
(e muitos destes, sempre que podem, usam o mesmo tipo de
comportamento).
Não sabemos como Deus consegue
fazer reinar a justiça. Mas sabemos que a pior «vaidade» é pretender
que Deus não passa de uma miragem. Para Coelet, se o ser humano se
sente tão infeliz, é porque experimenta, de alguma maneira, um nível
de vida plena – como Deus que está sempre para além das nossas
tentativas de o ver «como Ele é». Ora todas estas tentativas ficarão
como sementes, aparentemente mortas, mas que darão fruto a seu
tempo, enquanto houver “lavradores da Humanidade”.
São coisas que só sabe ver quem
tem outros olhos, de acordo com a 2ª leitura. S. Paulo, aliás, vê-se
que aprendeu a lição de Coelet – mas esforçou-se por «virar o bico
ao prego»: dar tamanha importância à vida e mensagem de um homem
crucificado como malfeitor e que teve por primeiros discípulos gente
sem valor aos olhos do mundo, é mesmo uma loucura, um contra-senso,
uma aposta na nulidade da vida. Mas por isso mesmo, se aconteceu
alguma coisa (como a extraordinária energia desse homem e seus
discípulos) é porque o único ser «que é» a sério, unindo bondade e
justiça perfeitas, está presente na história humana e nos leva pelo
menos a suspeitar do reverso da medalha. S. Paulo acredita mesmo num
mundo restaurado e apresenta a «ressurreição» como a valorização
suprema da nossa frágil existência.
Que diria o nosso melancólico
autor se visse a Igreja de Cristo «a acumular para si em vez de se
tornar rica aos olhos de Deus»? A preocupar-se com bens e honrarias
e a aliar-se, quantas vezes, às jogadas tão “baixas” dos poderosos?
Curioso o linguajar do negociante
do Evangelho: «Minha alma, tens muitos bens para longos anos.
Descansa, come, bebe, regala-te»... Destes cuidados, devia falar ao
corpo, que deles precisa para aguentar a energia própria da alma…
Pois foi esse o erro: preferiu deixar de ter «alma», que é a imagem
do «alimento» da vida. Não quis lutar até ao fim. E quando deram por
ele, tiveram que o tratar como um cobarde…
Almeida é uma antiga praça-forte que
fica para lá das «terras do Demo», bem perto da fronteira e que sabe
o que é ser atacada. Para se chegar a «Almeida» e aí aguentar, é
mesmo preciso muita «alma»… |