Liturgia Pagã

 

«Paz a esta casa!»

Domingo XIV do tempo comum (ano C)

1ª leitura: Isaías 66, 10-14

2ª leitura: carta aos Gálatas, 6, 14-18

                   Evangelho: S. Lucas, 10, 1-20

 

Ainda se pode ouvir esta saudação, que só nas últimas dezenas de anos passou a ser olhada como anacrónica. Será que já perdemos a esperança da paz? Será assim tão ingénuo ou "antiquado" «acreditar na esperança contra toda a esperança», como dizia S. Paulo? E será tão abominável ser assim ingénuo ou antiquado?

A milenar origem cristã desta saudação talvez tenha começado a cheirar a clericalismo, a beatice e sobretudo a hipocrisia. Mas alguma vez pensamos no que pode significar encontrar alguém pela manhã e desejar-lhe «bom dia»? Não é só desejar (se é que desejamos) que ele tenha um bom dia: é desejar sinceramente ajudá-lo a ter um bom dia.

A demasiada repetição torna as palavras vazias e sem interesse para quem as diz e para quem as ouve. Não estamos nós fartos de ouvir certos políticos e manifestantes falar de paz? Porque muitas vezes dizem ou só querem dizer uma palavra vazia, para não terem que se comprometer num rápido e eficiente plano de paz. E quantas vezes não pretendem mesmo inverter o célebre aforismo romano, falando de paz para melhor prepararem a guerra ao serviço de interesses particulares?

Nós sabemos distinguir entre o «Paz a esta casa!» que é dito por convicção e o que é dito mecanicamente. A convicção autêntica só existe quando se medita sobre o assunto, e então as nossas palavras são fortes, são «grávidas», como escrevia o pensador brasileiro Paulo Freire.

O evangelho de hoje mostra bem como os 72 discípulos se admiraram da força dessas palavras tão simples: «Paz a esta casa!»

Como é frequente na Bíblia, «72» é um número simbólico, chamando a atenção para que o anúncio do reino não se limita ao pequeno grupo dos apóstolos: todos o devemos propagar na nossa relação com os outros.

A 1ª leitura é um grande grito de esperança na paz duradoira para sempre, como Jesus quer que a vamos construindo até que se realize plenamente o «reino de Deus». Uma paz cheia da afectividade e carinho, que envolvem o berço do amor. Uma paz como nós a podemos viver entre amigos, entre a família, entre o grupo em que nos inserimos. Um ambiente em que a dor das próprias lágrimas pode ir adquirindo, suavemente, as tonalidades da alegria – escondida no passado, esperada para o futuro…

A leitura de S. Paulo, totalmente fora do seu contexto, como infelizmente é frequente na liturgia, pouco nos diz e muito confusa pode aparecer. S. Paulo preocupava-se imenso com marcar a novidade do cristianismo: a paz e felicidade não dependem de rituais, cuja repetição automática os pode esvaziar de sentido, como acontece com a nossa rotineira moda de baptismos e casamentos sem o compromisso de mais um passo comunitário para a paz. Que valor tem a circuncisão e outros costumes judaicos – quando o que interessa é mostrar no modo de viver os sinais de que se optou pelo projecto de Cristo? No domingo passado, saltava aos olhos como estes sinais também fazem doer...

Neste domingo, o aspecto doloroso da nossa dedicação à paz é recoberto pelo carinho e bem-estar que acompanham os nossos passos. Como se passou com os discípulos enviados por Cristo, chegaremos ao fim da missão «cheios de alegria», mesmo que o nosso sucesso mal seja visível, pois nos sentiremos admitidos como bons «trabalhadores» do reino de Deus. 

03-07-2010


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