2º Domingo da Páscoa (ano C)
1ª leitura: Actos, 5,12-16
2ª leitura: Apocalipse, 1,9-13.17-19
Evangelho: S. João, 20,19-31
Dizem os falantes de inglês: «fall between two
stools» – como de alguém tão incapaz de tomar decisões que acaba por
bater no chão...
«Two», «dois», «duo» em latim, «dyo» em grego
– do indo-europeu dwo – apontam o radical e sentido nuclear
de «dúvida».
Estou em crer que, ao jeito português (mas já
globalizado…), saltaríamos alegremente de cadeira para cadeira,
quais aceleras nas dúvidas.
A dúvida exprime, de facto, a tensão
constitutiva do ser humano, marcado desde o início pelo desejo da
«ciência do bem e do mal» (Génesis, 3,5). Já a palavra «ciência» tem
o mesmo radical de «cisão»: o ser humano tem no mundo sempre duas
situações à escolha.
Nem sempre é fácil discernir o bem do mal.
Muitas vezes se confundem, outras vezes falta capacidade de
discernimento, e de todas as vezes somos influenciados pelos nossos
fraquinhos – que por sua vez não sabemos discernir da liberdade de
consciência.
Por volta de 1600, Francis Bacon, filósofo
inglês notável (apesar de ser político…), chamava a atenção para os
cuidados a ter perante as dúvidas, discernindo habilmente as mais
perniciosas formas de adulteração de um juízo que se pretende
honesto (os famosos «Ídolos» ou matrizes de preconceitos).
A dúvida representa a nossa angústia perante
os dois caminhos que se rasgam continuamente à nossa frente (Salmo
1). Reflecte a experiência das limitações, da dificuldade em focar o
essencial e em encontrar a melhor estratégia; é o medo daquilo que
não dominamos pelo olhar e pela acção.
A dificuldade de focagem, porém, acontece
igualmente ao montanhista ou ao aventureiro do mar alto, quando
admiram a imensidão indefinível perante a qual se sentem perdidos.
Tal como os apaixonados, que se sentem
«perdidos» um no outro. Cada ser humano tem uma riqueza tão vasta,
que só é atingível pelo único olhar que vê muito para além do que se
pode focar.
É a visão própria do amor. A fé (no outro e em
Deus) é amor: não pode ser irracional, mas é a única forma de ver o
que não se pode focar.
É o amor que nos leva à mais fecunda e grata
realização da capacidade de agir – que manifesta a vida
característica do ser humano, unificando, na expressão corporal,
sentimentos, inteligência e vontade. A escolha por amor não é fechar
os olhos aos aspectos negativos – é levar toda a vida a elaborar
cada vez mais profundamente as razões e sentimentos que sustentam
essa escolha, com o enriquecimento da experiência de vida (um
trabalho a ser feito «em grupo»).
Que dizer daquelas pessoas cuja vida é uma
explosão de horizontes? São pessoas vertiginosas e no entanto
pacificadoras; incompreensíveis e no entanto cativantes; exigentes e
no entanto amorosas.
Tomé, o Dídimo, conheceu uma dessas pessoas
(evangelho): chamava-se Jesus, e muitos viram nele o Messias
instaurador de tempos novos. Através das suas palavras e da sua
vida, Deus parecia mais luminoso, mais familiar, como o Pai ou a Mãe
jamais sonhada. E no entanto, era também um Deus ausente, um Deus
que nenhum olhar consegue focar com precisão (excepto talvez aquele
único olhar…)
Se fosse hoje, diríamos que Tomé parecia o
mais honesto: aquela história de Jesus vivo... Bem sabia como ele
tinha sido torturado até à morte na cruz dos malfeitores.
Mas os outros não duvidavam? Os próprios
evangelhos dão a entender que sim. Como dão a entender que se
tratava de uma experiência de tal modo estranha, que se podia chamar
uma história de loucos (1ª Coríntios,1,18) ou de drogados (Actos,
2,13). Precisamente ao mostrarem a dificuldade de apregoar a
verdadeira Vida de Jesus Cristo, obrigaram-nos a enfrentar a nossa
«dúvida constitucional»: ser racional implica duvidar e exercitar o
discernimento para pôr de lado os «ídolos» que impedem uma visão
independente e audaciosa.
Só com um olhar liberto de preconceitos e
francamente amigo da razão, é que podemos confiar na escolha que
fazemos.
É a dúvida que nos faz procurar uma verdade
cada vez mais sólida – cada vez mais razões para amar. Nas relações
humanas, a dúvida exige diálogo – e o diálogo com Deus facilmente
perde substância se não é cultivado a par do diálogo com os seres
humanos.
Só então deixamos
de saltar ou de pasmar entre duas cadeiras, nem corremos o risco de
ficar sem o lugar da nossa dignidade. |