Liturgia Pagã

 

Mas não há nada como a boa companhia!

2º Domingo da Quaresma (ano C)

1ª leitura: Génesis, 15, 5-18

2ª leitura: Carta aos Filipenses, 3,17-4,1

Evangelho: S. Lucas, 9, 28-36

 

Sem dúvida que era preciso ao «povo escolhido» atravessar um deserto, para vencer as ilusões do caminho da terra desejada; que era preciso a Jesus dominar as miragens de poder e de rica vida, para não vir a ser mais um fala-barato; que era preciso aos apóstolos sustentar as consequências duras de uma escolha, nascida entre muitos momentos de visão desfocada, para não merecerem a troça de toda a gente.

Mas não há projecto que se aguente, sem amigos reconfortantes.

Abraão sentia que era amigo de Deus e Deus seu amigo. Mas não parava de se queixar: «para que me servem as tuas promessas, se eu nem sequer tenho um filho que me acarinhe a vida?» (Génesis, 15,2-3). E ficariam satisfeitos, os apóstolos, com um Jesus «cheio de glória» (evangelho), se não pudessem ficar ao pé dele? E bastaria a S. Paulo o entusiasmo por Jesus Cristo, sem a esperança de viver junto dele como com o maior amigo (Filipenses, 3,10.21)?

Não bastam as promessas de bons momentos futuros. É desde já que precisamos de sentir que todas, mas mesmo todas, as vicissitudes da vida a vão transformando positivamente, num processo de bem sucedida «transfiguração».

É o tema das três leituras de hoje. Cada uma a seu modo traz as cores das nossas esperanças e frustrações.

A vida de um Abraão que tudo indicava não poder ter filhos transforma-se na vida de todo um povo. E a curta vida de um «filho de Abraão», Jesus de Nazaré, condenado à morte da cruz, transforma-se numa vida verdadeiramente vida que continua a conduzir a vida de muitos povos.

Por isso, a dura realidade da morte é sentida (2ª leitura) como a transformação da nossa aparência perecível num modo de existir misterioso que é o da vida verdadeiramente vida.

A constante esperança de que tudo se transfigure para definitivamente melhor é alimentada pela força mais poderosa dos seres humanos: um braço amigo.

Como seria a vida dos profetas e de Jesus, sem os amigos, sem os bons mestres e as «santas mulheres»? Não gostava Jesus de recompor as forças em casa de Maria, Marta e Lázaro?

Abraão conseguiu uma vasta descendência e a posse da «terra prometida». Mas também lhe foi dado sofrer o futuro doloroso: muitos séculos de desgraça fariam sentir a esse povo que a beleza da vida é uma semente divina que só cresce se bem cuidada.

E ninguém se deve furtar a este cuidado discreto de “fiel jardineiro”, atento a eliminar o que é corrosivo e a fortalecer o que está bem. Assim colaboramos na transfiguração do mundo.

É o trabalho dos «braços amigos» que nos ajuda a subir e a aguentar firme nas mais ásperas escarpas da vida e nos apontam os horizontes do conforto e da esperança e onde podemos descobrir como tudo se pode transfigurar.

O cultivo das amizades facilita uma eficaz “gestão de energias”, o acerto nos modos de “transfiguração”, o discernimento do seu real valor e daquilo por que interessa mesmo lutar. Nas conversas amigas, tira-se proveito tanto do trivial como do mais sério – e assim tudo na vida pode receber um valor positivo. E por que não há-de entrar numa conversa trivial a descoberta de como em tudo se pode realizar o profundo desejo de «transfiguração»?

Abraão, apesar da longa idade e sem ter filhos, acreditou que havia de fazer muito “na boa companhia” de Deus.

Para Pedro, João e Tiago, tudo começou numa caminhada vulgar e com eles caidinhos de sono. Para Jesus, a simplicidade é a boa terra para construir o novo mundo. Quando abriram os olhos, contemplaram a realidade escondida de Cristo em Jesus. Gostaram tanto do que viram (Jesus falando com Moisés e Elias), que o que lhes apeteceu foi ficarem a gozar (sem muito esforço…) da boa companhia!

Na realidade, esta pequenina história é a condensação da extraordinária experiência dos apóstolos: só depois da morte de Jesus, é que perceberam a sua força bem viva e actuante e de como tinham andado, até então, de olhos fechados quanto à realidade.

No tempo de Abraão, era costume que as partes empenhadas num acordo ou aliança se submetessem ao ritual de atravessar entre as carnes esquartejadas dos animais sacrificados, com a imprecação: «assim seja eu esquartejado se for infiel à promessa!» Mas quem escreveu a história (1ª leitura) sabia tão bem da fragilidade humana, que disse que só Deus é que passou…

Também sabia que Deus é sempre fiel apesar das nossas aldrabices, sempre justo apesar das nossas injustiças e sempre presente nas carícias e saudades, com o sabor refrescante e garantido de quem não nos quer “esquartejados” pelos nossos trambolhões nem pelas tragédias que se abatem sobre nós, mas sempre prontos a pôr de pé para gozar a alegria «em boa companhia»…

27-02-2010


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