26º Domingo do tempo comum (ano B)
1ª leitura: Livro dos Números, 11, 25-29
2ª leitura: Carta de São Tiago, 5, 1-6
Evangelho segundo São Marcos: 9, 38-48
Se procurasse ver um tema comum nas três leituras, seria o de
profecia: não no sentido de anunciar coisas do futuro, mas no
sentido mais profundo de ser porta-voz. É arriscado ser porta-voz de
Deus. Exige não ter medo nem vergonha – sem precisar de ser
desavergonhado!
Todos os profetas, incluindo Jesus, se sentiram isolados. É menos
penoso e mais seguro fazer a gestão dos nossos dons em grupo, para
que nos possamos corrigir, enriquecer e animar. O «grupo de
referência», aliás, desde tempos imemoriais que funciona como
garantia da sanidade e credibilidade de cada um dos seus membros.
Não faltam exemplos na história antiga, religiosa ou profana.
Pertencer a uma família respeitada era a melhor carta de
apresentação, estivessem em jogo planos políticos, matrimoniais,
económicos… Aliás, a sã competitividade entre empresas, escolas e
países, tem o fundamento no grupo familiar, no cuidado dos membros
por merecerem o reconhecimento do (bom) nível da comunidade.
Já nos tempos apostólicos, uma «igreja» era uma comunidade cristã,
no seu todo. E a rectidão dos juízos e comportamentos formava-se no
espírito de diálogo e de partilha, de correcção e de emulação
(leiam-se os Actos dos Apóstolos e as várias cartas do Novo
Testamento). A expressão «sentir com a igreja», infelizmente, ganhou
o sentido de submissão à «ortodoxia» imposta por um grupo dominante
que, como tal, de modo nenhum podia ser representativo do conjunto
das «igrejas». Talvez fosse menos ambíguo dizer «sentir em igreja»
(consciência da unidade em Deus − traduzível na expressão «comunhão
no espírito santo»).
Moisés queixava-se de ter de aguentar sozinho os problemas dos
israelitas (leia-se todo o capítulo a que pertence a 1ª leitura).
Disse pois Deus a Moisés que escolhesse setenta homens de verdadeira
sabedoria e autoridade, e deu-lhes o dom da profecia. Acontece que a
essa «tomada de posse» não estiveram presentes alguns dos
escolhidos. Porém, com escândalo de muitos israelitas, até os que
faltaram receberam igualmente o mesmo dom. A esses que mostraram
indignação, Moisés respondeu: − «Quem dera que todo o povo do Senhor
profetizasse, que o Senhor enviasse o seu espírito sobre ele!»
Coisa de mil e duzentos anos depois, alguns Apóstolos foram ter com
Jesus (evangelho), indignados porque havia quem estivesse a
profetizar sem pertencer ao grupo! E que respondeu Jesus Cristo? −
«Quem não é contra nós, é a nosso favor!» Enfim, a total ausência de
mesquinhez, de partidarismos primários, de exclusões sociais ou
religiosas. Em vez disso, o olhar sereno e estimulante de um
espírito livre e alimentador da liberdade.
Dá para pensar que não devemos excluir ninguém, sem avaliar
honestamente e sem preconceitos as suas palavras e acções. Acontece
que não só «excluir» mas até «avaliar» ganharam agressividade:
grande parte do stress de hoje em dia provém de nos sentirmos, e
sermos de facto, avaliados e excluídos – por vezes arbitrariamente
ou por uma bitola adequada apenas a animais de abate. Ora entre
pessoas, os juízos nunca podem ser definitivos e por isso a própria
avaliação só tem valor em simbiose com um diálogo sem mentira,
corajoso, onde se enfrenta o outro e se discorda fundamentadamente,
sem ferir e muito menos destruir. Mas também não vale excluir-se a
si próprio, por comodismo, falsa humildade ou por problemas de
auto-estima.
Porém, se alguma coisa está mal em nós, é nossa obrigação ter a
coragem de reconhecer e eliminar o que está mal. Mais uma vez, é
vital o comportamento da «família». Quem não precisa de desabafar?
Quem não desanima de ser honesto e justo, porque a vida só parece
sorrir aos que o não são? Quem não precisa de ser encorajado para
abdicar, como diz o evangelho, do que é para ele tão precioso como
um olho ou um pé, quando está em jogo toda a vida?
Na história das religiões, «vida» aparece com o sentido de
«salvação». Quando nos queixamos de que «isto não é vida», é porque
não sentimos salvação. E só ilusoriamente é que julgamos podermo-nos
salvar sozinhos, repetindo que o mal só acontece aos outros − aos
«desvalidos». A vida que conhecemos só adquire a perfeita qualidade
de vida, se a construímos de maneira que saibamos enfrentar a morte.
E só na medida em que se salvar a vida de todos é que nos salvamos a
nós próprios. Precisamos de nos entusiasmar com a concretização
quotidiana da salvação da humanidade: sentir-se bem com a procura do
maior bem para todos − «fazer a grande família».
O tema da justiça é central nos livros do Antigo e Novo Testamento.
Foi com este espírito que o Apóstolo São Tiago se dirige cruamente
àqueles ricos e poderosos que não se importam de fomentar a
injustiça, pervertendo o poder e autoridade, colando à miséria os
mais humildes e pobres, calcando-lhes os direitos, «assassinando o
justo que não pode resistir».
O pior é que muitas figuras poderosas (um termo já em si pouco
espiritual…) no seio de organizações religiosas, nomeadamente na
Igreja católica, preferem colar-se «àqueles ricos e poderosos», para
fugirem à sorte dos justos… Ao menos, poderiam ser exemplo de quem
tem coragem para reconhecer o que parece bem e o que parece mal,
independentemente do estatuto, cor política ou religiosa de quem é
responsável por esse bem ou esse mal.
A «salvação» designa o estado de perfeição do universo criado por
Deus. Até o chamado mundo material como que espera impaciente que
chegue, para ele também, a «palavra de salvação». O desenvolvimento
do pensamento religioso, referindo especialmente o testemunho de
Jesus, despertou a humanidade para o investimento naqueles bens que
«estão a salvo» de calamidades ou acções terroristas. Só com a
segurança deste capital é que «esta vida» não será de deitar fora …
A vida é uma corrida de estafetas, em que somos porta-vozes de Deus
– Ele é «o critério» porque está acima dos nossos critérios, o que
nos obriga a um aperfeiçoamento contínuo das nossas razões de pensar
e agir. Cumpre-nos passar a todas as gerações o testemunho da
justiça, da alegria, do amor, do prazer, da força e do sentido da
vida (mesmo e sobretudo nos cenários mais tristes). É pelo esforço
(que só Deus conhece) de cada estafeta, que se vai expandindo e
tornando cada vez mais eficiente, «a palavra de salvação». |