7º Domingo do tempo comum
(ano B)
1ª leitura: Livro de Isaías, 43,
18-25
2ª leitura: 2ª Carta de S. Paulo aos Coríntios, 1, 18-22
Evangelho: S. Marcos, 2, 1-12
Quem se puser na pele do paralítico do evangelho deste domingo bem
pode sentir uma grande frustração: francamente, tanto trabalho e
engenho para se aproximar de Jesus e ser curado – e vê-se
liminarmente despachado com uma absolvição dos pecados!
Talvez que o
relato seja amplamente forjado pelo evangelista, com o intuito de
sublinhar o carácter divino de Jesus Cristo. Como quem diz: só pode
curar verdadeiramente quem tem o poder de perdoar os pecados (Deus).
Ora Jesus, como diz a 2ª leitura, é o perfeito Ámen – expressão da
força que une a fé humana à verdade e bem-querer divinos.
(Nesta passagem
da 2ª carta aos Coríntios, S. Paulo refere-se à alteração de
projectos de viagem, o que lhe terá valido a acusação de não cumprir
o prometido. Na realidade, o ser humano, ao ponderar vários modos de
acção, procura imitar, mas com avanços e recuos, a simplicidade,
verdade e firmeza dos «projectos» de Deus, como se revelaram em
Jesus Cristo).
Talvez que este
relato seja também o reflexo da sentida necessidade de salvação da
Humanidade e da chegada do «reino de Deus» – que está sempre
chegando mas de modo imperfeito, e se revela no nosso esforço em
trabalhar com os «projectos» de Deus. Está em jogo a realização da
nossa felicidade pessoal e social, já neste mundo, que é o tempo de
gestão dos «negócios» em que Deus faz parceria com um ser criado «à
Sua imagem e semelhança» (Génesis, 1, 26).
Nos livros do
Antigo e Novo Testamento, perpassa a ideia forte do juízo de Deus
sobre todo o tipo de acções da Humanidade. É temeroso «o grande dia
do Juízo» (como se pode ver na famosa sequência «Dies irae»,
o dia da «ira divina», ainda há poucos anos lida nas missas de
defuntos), descrito com o maior aparato possível de catástrofes
cósmicas e de espantosos sinais nos céus e na terra. Perante esta
imponência do sagrado, o ser humano sente-se pequenino e «impuro»
(ver o comentário do domingo anterior). O seu maior desejo é que
Deus não leve em consideração os seus pecados mas sim a vontade de
ter «um coração honesto» (salmo 51).
Esta ideia de
salvação «no último momento» pode reflectir menoridade espiritual e
até a psicologia dos filhos estouvados de pais poderosos e bons:
quando as coisas apertarem a sério, lá se arranjará maneira de
comover o paizinho e a mãezinha…
De facto, a ideia
de «salvação», sobretudo no Antigo Testamento e em muitos usos da
linguagem corrente, refere-se à libertação de qualquer situação
adversa, seja a doença e ameaça de morte, seja a guerra (sobretudo
quando parece mais provável perdê-la…), a injustiça e outras
situações de perigo. Não se trata da «salvação da alma» como fala a
catequese tradicional, mas a salvação da integridade da pessoa
humana e de todo o tecido social «agora e para sempre». Trata-se de
um salvação contínua, não só do nascimento à morte de cada pessoa
mas ao longo de toda a evolução da Humanidade.
Toda a
enfermidade, toda a tristeza, todas as contrariedades… são ameaças
de morte. É bem natural pôr todos os esforços na defesa da saúde.
Mas o que é a saúde? Na sua perfeição, não é definível. Como
«libertação do mal», é apenas um ideal a orientar a nossa acção. A
luta pela saúde integral implica que também saibamos gerir o
sofrimento e utilizá-lo para um estado de equilíbrio e de riqueza
humana superiores. Por outro lado, a saúde meramente biológica pode
gerar seres humanos insensíveis ao bem dos outros, desprovidos de
projectos de vida capazes de promoverem mais vida pelo tempo fora. A
consciência do sofrimento é a consciência da nossa adaptação ao
mundo onde cresce lado a lado «o trigo e o joio» (Mateus, 13,
24-30.36-43). É da maior importância para a saúde global ter alegria
pela contemplação do bem e força para resistir e combater o que é
mal.
«Pecados &
Companhia» tanto pode ser uma empresa daqueles que usam a sua saúde
para fazer mal ou viver à custa da saúde dos outros, como pode ser
uma visão global da condição humana: somos seres «errantes» (isto é:
não seguimos em linha recta, o que nos expõe às surpresas boas e
más) mas necessariamente integrados na sociedade com os Homens e com
Deus.
Velha e
provavelmente insolúvel questão da Humanidade, a do bem e do mal.
Jesus tinha consciência do mal (do mal que o afectava pessoalmente e
do que afecta continuamente os seres humanos) mas não desanimou de
pequenos gestos libertadores. Todas as curas são sinais da
«salvação» desejada por todo o ser vivo, na medida em que sente que
pode ser ou estar melhor. É por ser resposta a este desejo
fundamental, que ao evangelho se chama «palavra da salvação».
A forma
definitiva do «reino de Deus» é o fim do reino do mal. É o domínio
da Paz.
Não consta que
Jesus tenha dito a alguém enfermo que tivesse paciência e esperasse
pela «ressurreição»… Ele próprio protegeu a sua vida e a saúde,
necessárias para aguentar as consequências extraordinariamente
dolorosas da sua dedicação «à causa de Deus e dos Homens» e para
mais claramente afirmar que esta vida conduz a uma nova vida que
chamamos «ressurreição» – onde a justiça ou perfeito equilíbrio quer
de cada pessoa quer da sociedade no seu conjunto formam o «mundo
novo» referido várias vezes na Bíblia, o mundo das «coisas novas que
já começam a aparecer, como rios a brotar do deserto» (1ª leitura).
Mas Deus exige o nosso trabalho de parceiros.
Quando estamos
saciados, não procuramos mais (por isso importa «ter fome e sede de
justiça», como se diz nas bem-aventuranças). Mas na vida há sempre
desertos a serem admirados pela sua mistura de beleza e tormento, a
serem experimentados como estímulo, e sobretudo a serem percorridos
sem perder a esperança e a orientação que nos levam à mesa redonda
com o Grande Parceiro do negócio da vida.
Como devia ser
bom sentir a autoridade de Jesus dizer-nos para não termos medo!
(«Medo» é muito diferente de «temor»: na saga do «paraíso
terrestre», Adão, depois de ter desobedecido a Deus, teve medo –
porque não teve o devido temor, ou respeito, perante as advertências
de Deus). No fim de contas, só não tendo medo é que vale a pena ter
saúde… E mesmo sem a saúde desejada, a confiança é que nos permite
levar a nossa vida como um projecto, por muito paralíticos que nos
sintamos…
Quem sabe se um
dos escribas que estava com Jesus não ficou a pensar: será que ele
diz que o perdão dos pecados só interessa se é uma cura da saúde
global? Se nos dá mais ânimo para viver e fazer viver? E que, mesmo
quando se fica preso da mais grave doença, há lugar para um processo
de cura do pessimismo da vida, quer para o doente quer para a
companhia? Até que deve dar jeito a parceria com Deus… |