Liturgia Pagã

 

Sobressalto na cidade

 

 

Domingo da Epifania (ano B)

1ª leitura: Livro de Isaías, 60, 1-6

2ª leitura: Carta aos Efésios, 3, 2-6

Evangelho: S. Mateus, 2, 1-12

 

Ainda hoje Jerusalém continua perturbada. Uma cidade marcada, desde há milhares de anos, por violentos conflitos. A paz é a tenacidade de superar os conflitos pela justiça. A harmonia é feita de sons diferentes, por vezes discordantes, mas que resultam sempre numa feliz obra de arte.

S. Paulo, na carta aos Colossenses (3, 12-14) fala dos condimentos da paz: «sentimentos de misericórdia, de bondade, de humildade, de mansidão, de paciência, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente».

Não faltam estudos sobre a violência, acabando por repetir a já velha ladainha de causas (evidentes para quem sabe olhar à volta), apontando todas elas para um básico ambiente degradado.

Fala-se relativamente pouco da educação, onde a violência é o fruto da sua pobreza, desde a família até às mais altas instâncias do ensino superior: os efeitos funestos são patentes quer no «trabalhador vulgar» quer em grandes empresários ou políticos. A educação assenta em transmitir entusiasmo para seguir a estrela dos nossos ideais, caldeados por um ambiente simultaneamente protector e crítico. Os reis que teriam visitado o Menino eram «magos», orientais em «educação contínua». E por isso, tinham os olhos treinados para discernir, naquela «estrela anormal», os sinais dos tempos: desinstalaram-se (como fizeram os apóstolos ao serem chamados por Jesus) e puseram-se a caminho.

É pegar ou largar: se queremos a paz, temos que largar decididamente os nossos velhos preconceitos, desavenças e ódios (entre nações, famílias, partidos políticos...). Mesmo os que são geneticamente inclinados à violência, poderiam pôr-se a caminho da paz, se não lhes faltasse a educação necessária para «descobrir as estrelas» e escolher o trilho do verdadeiro prazer da vida. E como aconteceu com os Magos, há sempre uns sabichões para enganar aqueles que fazem da honestidade a principal carta de apresentação.

Mateus põe-nos a pensar por que é que «toda Jerusalém se perturbou». Compreensivelmente, ficou despeitada por serem gentios (os «pagãos», como nós!) aqueles que estavam atentos ao sentido das escrituras; e também porque era mais agradável a alternativa de manter, passivamente, a esperança de um messias que fizesse dela uma grande e poderosa cidade – na linha dos interesses materiais e egoístas, fonte reconhecida de violência. Os Reis Magos perguntaram: «onde está o rei dos judeus que acaba de nascer?» E os judeus sentiram-se aviltados com a “ameaça” de o seu messias ter aparecido sem dar nas vistas «de quem de direito», e sem glória nem poder. Não viam o alcance do texto de Isaías (1ª leitura), e prenderam-se ao triunfalismo próprio desse texto de profunda poesia. Não quiseram acordar para a realidade. Na verdade, também os discípulos de Jesus não perceberam o alcance do fracasso e morte aviltante de Cristo (Lucas, 24, 13-35). Porém, tinham o coração preparado para a mudança, para escutar a voz de Deus, acabando por encontrar o fio à meada.

De Jerusalém, ninguém quis ir com os magos à procura, e até tramaram um ardil para aniquilarem a possibilidade de que um estranho menino pudesse vir a ser o messias. Só o conseguiram matar uns trinta anos mais tarde, mas ainda hoje continua a deixar em sobressalto grandes cidades, governos e nações.

 

AVERBAMENTO

Jerusalém, existente já na pré-história, é a antiga cidade canaanita de «Urushalim» («fundação do deus Shalem»), possivelmente a cidade de Melquisedec, contemporâneo de Abraão (Shalem, ou Salém, pode significar paz ou salvação). Foi conquistada por David (1005 a.C.) que, secundado pelo filho Salomão, a transformou no centro político e religioso de Israel. Desde o princípio, foi uma cidade com estatuto especial, não pertencendo a nenhuma tribo, representando a unidade do «povo de Deus» e a «morada do Senhor». Porém, continuou a ser o alvo de várias conquistas, invasões e destruições, quer por conflitos internos quer pela cobiça de povos vizinhos (egípcios, árabes, filisteus, assírios, babilónios e por último os romanos). Cedo começaram as cisões políticas e infidelidades dos reis e do povo para com a lei de Moisés. Os profetas referem os momentos de grandeza ou decadência como provas ora do amor ora da ira de Javé. A supremacia, prosperidade e paz de Jerusalém só seria possível com base na «conversão» pessoal e colectiva, originando uma «nova Jerusalém», cidade de Justiça e «esposa do Senhor» (Isaías, 1,26; 54,4-10). A restauração da cidade promovida por Ciro concretizou esta visão: doravante, os povos poderão subir livremente ao templo do Senhor, e a glória do Senhor resplandecerá nela para sempre. Porém, a sublevação político-religiosa dos Judeus causará a destruição definitiva pelos romanos, e ainda hoje não encontramos nela nem justiça nem liberdade – que só elas são o sorriso do «rosto do Senhor».

Os primeiros cristãos e os apóstolos ainda verão nela o centro de irradiação da «boa nova», mas progressivamente irão construindo a imagem da «nova Jerusalém» (Apocalipse, 21, 9-27), «a noiva, a esposa de Cristo». As nações serão por ela iluminadas e os grandes da terra reconhecerão a sua glória. Mas nela, só entrarão os que defenderem o «livro da Vida» – os verdadeiros reis magos.

Jerusalém simboliza a tensão morte-vida, caducidade-firmeza, e o sonho ancestral de um «regaço» ou «útero» em que possamos viver tranquilamente, sem nada temer, no presente e «para sempre» (como dizem os apaixonados). É sempre com tristeza que vemos esfumar-se esse regaço e essa paixão, sobretudo se nada vem preencher o vazio. Jesus Cristo chorou ao ver a imponência de Jerusalém e ao pensar no previsível futuro de destruição. Também é verdade que Jesus insistia em que não nos prendêssemos a templos e tesoiros perecíveis, mas cuidássemos da pessoa humana como sendo o verdadeiro templo e o verdadeiro tesoiro, que nada pode destruir.

 
 

 30-12-2008


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