Festa da Sagrada Família (ano B)
1ª leitura: Livro de Ben-Sirá, 3,
1-14
2ª leitura: Carta aos Colossenses,
3, 12-21
Evangelho: S. Lucas, 2, 22-40
Estava lá, nas
margens do Nilo, e olhava bem à sua volta, sem se perder a olhar só
para si própria. Foi assim que pôde reparar num cestinho arrastado
pela corrente. Surpresa! Lá dentro, um menino dos Hebreus! E a
princesa do Egipto quis aceitar aquele menino como seu, apesar do
Faraó seu pai ter ordenado a morte de todos os filhos varões dos
israelitas. Deu-lhe o nome de Moisés, o futuro «pai» da organização
religiosa do povo escolhido, em que seria educada a família de
Jesus.
A mesma sã
curiosidade animava as figuras proféticas de Simeão e Ana, num
cenário dramático e poético que se enraíza em várias figuras e
cânticos do Antigo Testamento. Note-se o paralelismo entre o cântico
de Simeão, o de Zacarias e o Magnificat, todos eles recolhendo a
espiritualidade bem visível nos salmos e no profeta Isaías.
Sabemos que o
conceito actual de «rigor histórico» (em si, um conceito
probabilístico, oscilando entre o mero elenco de factos e o trabalho
e enriquecimento humanos da interpretação e sistematização) é
desconhecido dos autores antigos, e particularmente inadequado a
textos que pretendem incidir no significado da acção de uma figura
importante, como é o caso dos livros do Novo Testamento.
Se os
evangelhos apócrifos deram asas à imaginação quanto à vida de Jesus
anterior à sua obra pública, já o que resta nos evangelhos de Mateus
e Lucas vale sobretudo pela vontade e necessidade de fazer sentir ao
ouvinte e leitor a força divina que se manifestou na pessoa de
Jesus, dando cumprimento ao desejo – e promessa – seculares de uma
união de Deus com os Homens.
Não há plástica,
por mais refinada que seja, que se adapte a Deus… Os textos sagrados
estão sobretudo interessados em descrever o jogo de atitudes dos
Homens perante a contínua e imprevisível revelação de Deus. Foi de
tal maneira estranho o percurso de Jesus neste mundo que
naturalmente se usou a simbologia e cenários disponíveis para vincar
esta realidade – que é mais cómodo e materialmente mais rentável
ignorar.
(Uma
interpretação redutoramente literal dos evangelhos é patente na
«desconsideração» pelo papel de S. José, o que levou muitos e até
grandes pensadores cristãos a favorecerem uma incompatibilidade
entre a actividade sexual e a total colaboração com o plano de Deus;
muitas pessoas têm sofrido desta apreciação degenerativa da
sexualidade; facilitou-se a degradação do conceito e costumes em
toda a sociedade, e as trevas atingiram a própria espiritualidade do
voto de castidade; a consequência mais perversa desta «inflação
sexual» será deixar facilmente na sombra o estudo e implementação de
estratégias para mais justiça social).
Simeão e Ana
simbolizam bem o que é estar atento aos «sinais dos tempos»,
utilizando a riqueza cultural e um comportamento de incansável busca
de Deus. Sentiram que chegava algo de novo, que nunca seria
descoberto se não se aproximassem e dialogassem, mesmo sem
compreender plenamente o que se passava. Igual atitude é atribuída
aos pais de Jesus, que meditavam sobre qual seria o sentido das
coisas que se passavam com o seu filho. E por isso souberam viver o
drama da incompreensão, bem como as dores e alegrias, que marcaram a
vida de Jesus e puderam captar o sinal de «Deus connosco».
Pertenciam ao grupo dos que são conscientes de que a razão humana
também sofre de miopia (um tema recorrente em S. Lucas: 5,22; 6,8;
9,47; 24,38).
É por esta
atitude que a Família de Jesus é exemplo: não por serem parentes
íntimos mas por «ouvirem a palavra de Deus e a porem em prática»
(Lucas, 8, 21).
Aliás, todas as
famílias são «sagradas» porque «dedicadas» à Vida – e Deus é a Vida.
É bom reconhecer que a Força que nos move não é uma força cega, um
feliz ou infeliz acaso: é Aquele que disse a Moisés «Eu sou aquele
que serei» – uma tradução tão provável como as mais conhecidas, mas
que vinca a revelação histórica de Deus, como quem diz: Os Homens
descobrirão o que Eu sou, na medida em que «deixarem ser»…
A Família de
Jesus, não desanimando perante muitos enigmas, permitiu que em Jesus
se revelasse «o rosto de Deus». Por estas e mais razões, a tradição
cristã pôde lembrar o quadro da família perfeita segundo o Antigo
Testamento (1ª leitura) e procurar que o espírito da família de
Jesus influenciasse positivamente o jogo de relações intrafamiliares
(2ª leitura).
Recentes
directrizes litúrgicas propõem outras leituras (Génesis, 15,1-16;
21,1-3; Carta aos Hebreus, 11,8-19), centradas ambas na fé de
Abraão, a quem, apesar da sua idade avançada, foi prometido um filho
(Isaac) que viria a ser pai de todo o povo escolhido e do qual
Abraão mostraria coragem de se desprender – uma família equilibrada
equilibra as forças centrífugas e centrípetas…
Protecção e amor
geram protecção e amor: dê-se carinho a quem já ficou «chatinho» (1ª
leitura) e aos rebentos novos da sociedade – se não se sentirem
amados, protegidos, criticados com prudência e estímulo, impedimos
que o projecto deles se transforme numa árvore frutuosa para a
humanidade.
«Pelos frutos
conhecereis a árvore», disse Jesus (Lucas, 6, 43-45). Jesus Cristo
comparou-se a um robusto pé de videira (João, 15, 1-2) e o reino de
Deus a uma árvore (Mateus, 13, 31-32) – e desejou que quem quer que
o seguisse se transformasse em troncos robustos capazes de lançar ao
alto rebentos sempre novos.
O remédio para a humanidade é tão simples como exigente – razão por
que muitos preferem ignorá-lo: se cultivarmos com perseverança a paz
e a justiça, veremos o seu fruto perpetuar a vida e alegria. De
resto, o suor e as lágrimas também adubam a vida. Mas é «em
família», solidificando o «nós» do bem comum e o núcleo de
afectividade, que cultivamos uma sábia e forte curiosidade pela
Vida. |