Comemoração de todos os Fiéis
defuntos.
Leituras propostas:
1ª leitura: Job, 19, 23-27; 2
Macabeus, 12,43-46; Isaías, 25,6-9
2ª leitura: 2 Coríntios, 4,14−5,1;
2Coríntios,5,1.6-10; 1Tessalonicenses, 4,13-18
Evangelho: S. Mateus, 11,25-30; S.
João, 11, 21-27; S. João, 6, 51-58
Na história da
Branca de Neve, havia uma passagem que me impressionava
singularmente: quando os Sete Anões encontraram a princesa caída por
terra, um resto de maçã venenosa na boca. Tão linda continuava, que
os Anões decidiram guardar o seu corpo numa redoma de cristal, para
que pudessem olhar para ela e senti-la sempre no espaço familiar.
Sonhava eu então que um dia faria assim quando a minha mãe morresse
– ela também era muito linda e pequenina…
Pouco a pouco,
todos nós vamos ocupando o lugar da geração mais velha e pouco a
pouco deixaremos aos outros o nosso testemunho. Por vezes, sentimos
lugares subitamente vazios à nossa volta, devido a variados tipos de
“violência”, como é a morte de um filho. Porém, mesmo sem a redoma
de cristal, podemos dar vida e seguir as boas recordações no espaço
familiar. Assim vamos sentindo que os que vão à nossa frente são
raízes robustas na terra mãe, que nos transmitem energia para dar
muito fruto.
As várias
leituras de hoje são o reflexo de antiquíssimas e profundas reacções
humanas à aparente frustração do nosso desejo de vida e à densidade
da mensagem de Jesus. O lendário Job e o dinâmico S. Paulo dão as
mãos para afirmarem a sua fé na perenidade da pessoa humana, vendo a
morte como um novo nascimento: sou mesmo eu, como quer que vá
«fantasiado», quem verá a Deus «cara a cara», mergulhando numa
aventura inimaginável, onde a tristeza e a morte não terão lugar, e
na qual saberemos ver o mistério da vida – e o mistério de cada um
de nós – com os olhos de Deus. As passagens do evangelho de João
convidam-nos a «sentar à mesa» com Jesus Cristo, que espalhou a
alegria da «ressurreição e da vida», ideia reforçada pelas leituras
de S. Paulo e do profeta Isaías. E na 2ª carta aos Coríntios,
aprendemos a saber olhar para a temporalidade da nossa existência,
superando a angústia e tomando conta de que, «se o homem exterior se
vai arruinando, o homem interior vai-se renovando de dia para dia».
O olhar humano
sobre a morte não se convence com altas teorias. Como também não se
convence com o imaginário religioso, mesmo quando alimentado por
veneráveis e seculares gerações de teólogos e místicos. “O céu de
Deus” não pode ser concebido segundo as modas de organização de
classes e de regime penal vigentes na história da humanidade.
Por isso, o dia
de hoje é a festa dos que (ainda…) não foram classificados no «rank»
do paraíso – é a festa de todos nós: dos nossos queridos, dos muitos
e muitos ignorados, e de nós que queremos ser «santos» como eles, ou
seja «sancionados» por Deus – pois só Ele pode «santificar», e como
só ele sabe!
Não há festa mais
pluralista nem mais vasta no tempo e no espaço: é a festa em que nos
juntamos à volta do valor perene de cada ser humano, mostrando, pelo
nosso afecto, que podemos construir um verdadeiro espaço familiar,
onde se amansam as angústias, se multiplicam as esperanças – e onde
o próprio Deus se faz sentir presente no meio de nós, Ele que «põe
as suas delícias em conviver connosco» (Provérbios, 8, 31).
É a verdadeira
festa em que não se dão preferências a crentes ou não crentes, a
homens ou mulheres, a poderosos ou a gente simples, novos ou velhos,
gente séria ou brincalhona (Gálatas, 3,28). É a festa em que nos
revemos em todas as memórias possíveis e em que juntamos as nossas
forças para saborear o segredo agridoce da vida e para transmitir às
actuais e futuras gerações a convicção de que, «apesar de tudo»,
vale a pena viver.
Talvez o que mais
custe é o silêncio dos que partiram. Sentimo-nos por vezes como uma
criança que grita pelos pais que não a podem ouvir. É um medo de
criança a que infelizmente se junta o medo que nos impede de «sermos
o próximo» de quem sofre e de partilharmos com ele a força e a
esperança. É um medo que nos fará cúmplices da crucificação de
inocentes, abandonados como Jesus – para quem o abandono dos homens
parecia o abandono de Deus. Só o amar e sentir-se amado é que rompe
este silêncio.
O dia de hoje não
é um encontro dos vivos para chorar os coitadinhos dos mortos. Eles
nunca serão mais coitadinhos que nós. Demasiadas vezes, a morte dos
outros (será sempre «dos outros»!) incomoda, porque sentimos mais
iminente a nossa vez. Ora a nossa ânsia de viver não deverá estragar
a própria vida. A nossa condição de mortalidade deveria – e poderia
– gerar um clima afectivo onde todos estamos presentes aos outros,
facilitando que a morte seja vivida como sinal de que somos muito
mais do que um animal vigoroso ou decrépito; vivida como exigência
de responsabilidade para promover a dignidade da vida, a começar por
nós e por quem está à nossa volta – um bem querer que se propaga
como uma onda. A solidão da morte é a consequência da solidão da
vida.
O dia de hoje é
mais uma «comemoração» do grande «banquete-convívio»: onde toda a
gente, mesmo toda, pode estar presente, e onde, pela mão de Deus,
enxugamos uns aos outros as lágrimas dos nossos olhos. Todos são
bem-vindos, com uma condição essencial: a de bem querer – «por
palavras e por obras». |