26º Domingo do Tempo Comum (ano
A)
1ª leitura: Livro de Ezequiel,
18, 25-28
2ª leitura: Carta de S. Paulo aos
Filipenses, 2, 1-11
Evangelho: S. Mateus, 21, 28-32
Porque Deus se
revela «aos bocadinhos». Nem podia ser de outra forma. Todas as
coisas que existem e especialmente cada ser humano é portador de uma
perspectiva sobre Deus. E é da maior importância que nos saibamos
abrir à perspectiva do outro, que nos questiona e nos enriquece. O
próprio Jesus Cristo estava condicionado pelo tempo e espaço em que
veio ao mundo e limitou-se a lançar sementes capazes de levar a
humanidade, ao longo dos tempos, a descobrir lentamente, num
processo de contínua reformulação feito de avanços e recuos, a
realidade de Deus.
O Deus de Jesus
não se revela conceptualmente ou filosoficamente. A Bíblia e muitas
outras experiências religiosas atestam como está muito para além das
categorias humanas. Em Jesus, Deus revela-se como um Pai que se
compraza na boa relação que consegue ter com os filhos. Não é
verdade que, das nossas memórias, as mais gratificantes são as que
nos alimentam com testemunhos de verdadeiro amor e amizade?
O evangelho de
hoje compara dois filhos: um diz que faz mas não faz; o outro diz
que não, mas depois realiza a vontade do pai. O primeiro tinha bom
dizer mas mau fazer. O pai não se podia rever naquele filho. Por
isso Jesus não hesita em provocar um grupo de judeus considerados
dos mais sábios, para lhes fazer sentir que a sabedoria é muito mais
do que palavras bonitas.
Nem de nada vale
a esses judeus serem representantes do «povo eleito» e terem
antepassados de reconhecido valor. O valor dos antepassados pode ser
continuado ou traído pelos descendentes.
O profeta
Ezequiel, ao longo de todo o capítulo, desenvolve o tema da
«retribuição pessoal»: opõe-se à primitiva noção da falta e castigo
comunitários, que implicava a mesma pena para todo o grupo ou para
os descendentes dos faltosos. Não: perante Deus, cada qual é o
responsável pelas suas acções, para o bem ou para o mal.
Deus comunica-se
a cada qual na medida em que não lhe opomos resistência. Mas a
comunidade em que vivemos exerce normalmente uma forte influência na
nossa atitude de fé – e cada membro dessa comunidade é responsável
pelo seu nível e qualidade de vida ao serviço do pleno
desenvolvimento de cada pessoa. A nossa comunidade tanto pode
favorecer uma fé assumida e adulta como contentar-se ou divertir-se
com expressões teatrais de uma tradicional fé religiosa, onde
abundam tanto os sketchs cómicos como os dramáticos ou mesmo
trágicos.
A comunidade
educativa é aquela que defende o melhor ambiente possível onde cada
pessoa tenha consciência e manifeste as suas aspirações, estudando a
melhor maneira de as realizar tendo em conta os condicionamentos
humanos.
Resistimos a Deus
se vemos nele um «estraga-vidas», em vez de um convite em pessoa a
entregar-nos a todas as acções que geram mais vida. Onde se dá mais
vida, dá-se mais profunda perspectiva de Deus.
A leitura de S.
Paulo é uma das mais célebres «perspectivas» sobre Jesus Cristo. O
homem Jesus é percebido na sua estranhíssima dimensão de uma pessoa
que deu exemplo de perfeita não resistência a Deus, aceitando o
risco de ir contra os esquemas de sucesso da sociedade em que vivia.
Só uma profundíssima intimidade com Deus pode sustentar uma vida de
risco assim, denunciando, com palavras, exemplos e particularmente
com a sua morte, o apego a esquemas de domínio sobre os outros em
vez de esquemas de libertação dos outros.
Este acto de
libertar é um «dom» pois é dar e perdoar (como já se viu nos
domingos anteriores, perdoar é «doar» a um nível muito mais
difícil). A credibilidade do libertador mede-se pelo seu exemplo de
libertação dos próprios esquemas correntes de sucesso, o que implica
ter a capacidade de abdicar de privilégios ou de direitos menores
para defender os direitos fundamentais de cada pessoa. Jesus correu
o risco de ser desprezado e espezinhado – e foi-o de facto. Correu o
risco de uma morte cruel – e sofreu-a de facto. Mas não quis o
sofrimento para os outros e até ajudou ao bem-estar de quantos a ele
recorriam.
Este
comportamento fora de série é que coloca Jesus «fora de série»,
levando-nos a olhar para a força que o sustinha – a força de Deus.
Sem esta orientação superior, os nossos esquemas de sucesso acabam
por ser elitistas, mesmo se bem intencionados, e por vezes
directamente injustos.
Conscientemente
ou não, todos nós desejamos um libertador – todas as sociedades,
todas as religiões, toda a acção política, intelectual e a do nosso
dia-a-dia, testemunham esta necessidade de nos libertarmos das mais
diversas formas de opressão: da doença, da guerra, da fome, da
injustiça, da angústia de viver. Por isso nos entusiasmamos
facilmente com figuras de sucesso (os mais «transparentes» ainda
serão os desportistas…) como exemplos de alguém «libertado» do
insucesso da vida.
Jesus não foi a
primeira nem a última pessoa a questionar sobre o que devemos
entender por sucesso. Só que fez a questão de maneira tão radical
que transformou a sua história pessoal numa questão viva e exemplo
vivo, até às últimas consequências, do grande projecto de Deus para
a libertação do ser humano: aceitar que Deus ama à imagem dum pai
perfeito, que é bom tratá-lo por Pai e que portanto não somos como
órfãos neste mundo, lançados à morte. O sucesso é a vontade genuína
de ajudar os outros a sentir que, apesar de tudo, vale a pena viver
e que portanto vale a pena lutar contra tudo o que seja sofrimento.
Mas afinal quem é
este Jesus? O hino de S. Paulo propõe uma resposta de fé. A tradição
cristã, desde os primeiros tempos, viu-o como participando
plenamente da «glória» de Deus, como tendo «condição divina». Têm
fracassado todas as tentativas de «explicação» da relação entre
Jesus e Deus. Jesus pede apenas (e não é nada pouco!) que
acreditemos que «quem o vê, vê o Pai», sem nos deixarmos enredar nas
especulações, pretensiosas e necessariamente redutoras, sobre «a
intimidade de Deus».
A dedicação de
Jesus a uma vida mais plena para toda a humanidade, despojando-se de
todo o interesse próprio («obediente» podia-se traduzir por
«totalmente permeável» ao espírito de Deus) foi sancionada e
justificada por Deus, e por isso merece o nome de Senhor, como um
filho pode ser investido de toda a honra do Pai.
A «glória» de
Jesus, como a nossa glória, é a «glória» de Deus. A sua vida e morte
têm todo o peso da alegria e dor da vida humana. Pela sua
ressurreição, podemos ver que a nossa vida, tal como ela é, mesmo
quando gritamos que não tem sentido, pode ser um acto de amor e
dedicação à «causa dos Homens» – a grande preocupação de Deus, que
«precisa» da colaboração dos seus «filhos».
E assim, aos bocadinhos, vamos meditando nos «bocadinhos» de Deus. |