20º Domingo do Tempo Comum (ano A)
1ª leitura: Livro de Isaías, 56,
1.6-7
2ª leitura: Carta de S. Paulo aos
Romanos, 11, 13-15, 29-32
Evangelho: S. Mateus, 15, 21-28
Mais uma leitura
de S. Paulo que exige uma ginástica de saltos mortais no tempo e nas
culturas. Dos textos do Novo Testamento, as cartas de S. Paulo são
as mais circunstanciais, dirigidas que são a comunidades com
problemas muito específicos, com a preocupação imediata de as
fortalecer tanto na fé como na organização social. Para nós, o maior
valor dos escritos de S. Paulo provém de constituírem as mais vivas
e imediatas reacções, por parte de um judeu erudito e religiosamente
empenhado, ao fenómeno Jesus Cristo. A leitura das cartas por ordem
cronológica, sobretudo das de autoria mais garantida, guardam todo o
sabor das vicissitudes do entusiasmo inicial às voltas com
preconceitos, incertezas e certezas da época, becos sem saída,
esperanças com algum ou nenhum fundamento, tudo animado por uma
ginástica vigorosa, capaz de recolher saúde de viagens no escuro, de
trambolhões e de sendas doentias, construindo pacientemente e com
mais prudência uma «imagem» de Jesus Cristo cada vez menos
enganadora. No que S. Paulo mostra ser, afinal, um teólogo bem
prático – até os seus pensamentos mais complicados obedecem ao plano
do «quis, quid, ubi, quibus auxiliis, cur, quomodo quando». E
deixa-nos uma regra de oiro: Jesus Cristo não é cabeçalho de
tabuada, por mais bem entoada que seja; Jesus de Nazaré empenhou a
vida, no sentido autenticamente radical, não para ser copiado e
muito menos apregoado ocamente – mas para nos empenharmos a viver a
sua experiência de relação com Deus, como de um filho para com um
pai ou mãe, como de um filho que não duvida nunca de ser amado,
tanto nos momentos mais alegres como nos de solidão e sofrimento.
Até a angústia, desilusão e frustração, mais visíveis nas longas
horas que dramatizaram a morte, fortalecem as nossas raízes na vida,
garantindo que em nenhum momento deixamos de dar fruto, para bem de
quantos nos rodeiam e para a memória positiva de toda a humanidade.
Nos seus bons
tempos de judeu aguerrido, Paulo considerava-se como pertencendo ao
selecto número dos «filhos», para quem os «diferentes» nem
cachorrinhos eram. Todas as religiões institucionalizadas sofrem a
tentação de etiquetar «os outros» de infiéis e às vezes de os tratar
«abaixo de cães».
Mas quando viu
Jesus como sendo o Cristo, também viu com tristeza que afinal muita
gente da sua estirpe nem sequer mostrava a humildade e o afecto de
cachorrinhos. Toda a carta aos Romanos é disso elucidativa, mas
especialmente os capítulos IX, X e XI.
Pacientemente,
procurou o caminho de Deus entre a terrível confusão desta vida,
confiante de que «para aqueles que amam a Deus, todas as coisas
contribuem para o bem» (Romanos, 8, 28). Conhecedor como era da
história espiritual do seu povo, via como Deus já vinha anunciando
que muitos «filhos» podiam ser «deserdados», sendo substituídos por
muitos daqueles que até então eram desprezados como «cachorros».
Como devia ser
doloroso para S. Paulo, ver-se obrigado a dedicar-se aos «pagãos» –
de tal modo era mal aceite pelo seu povo! Porém, também era um facto
que muitos judeus começavam a abrir-se aos valores da mensagem de
Cristo. E vai S. Paulo de concluir: se a «maldade» do seu povo deu
origem a tanto bem, a que coisas maravilhosas não dará origem o seu
arsenal de bondade!
O autor da
terceira parte do Livro de Isaías (ver caixa) insiste na abertura da
religião judaica a todos os povos e em que o culto verdadeiro não é
o ritualista mas o das boas obras, nomeadamente o culto da justiça
social. Forma-se uma consciência que precisará de muitos profetas
até ao «fim dos tempos» (quando a vitória da justiça for universal).
Para Deus não há homens superiores e inferiores. Os próprios pagãos
e eunucos (gente posta de parte pela sua incapacidade de gerar
filhos) são tão bons como o mais «perfeito» judeu: todos serão
julgados igualmente pela vontade autêntica de praticar o bem
(capítulos 56-59).
Porém, o
universalismo foi uma conquista muito lenta, e mesmo no Novo
Testamento só aparece nitidamente depois dos discípulos de Cristo
caírem na conta do que significava a «ressurreição». Em várias
passagens dos evangelhos, o plano de começar a «boa nova» pelo
tradicional «povo escolhido» é exposto sem ambiguidade. Mas o
próprio Jesus explicaria que o «reino de Deus» é uma pequena semente
que se transformará em árvores frondosas e que «do Oriente e do
Ocidente» muitos virão tomar parte na festa do Reino de Deus
(Mateus, 8, 11).
Curiosamente, na
cena de hoje, até parece haver a intenção de «açular» a vontade dos
«cachorrinhos» em participar na festa da família. Uma manobra
arriscada? É sempre, e muita gente boa se perde por não ser
estimulada com prudência. Mas Jesus tinha o dom de avaliar a força
interior dos outros e quis enaltecer a resistência e persistência da
fé da mulher cananeia.
Terá sido uma
cena digna do Mercado do Bolhão: a maltosa, quase a abafar Jesus,
esbracejava e gritava contra a mulher, como doida varrida a pôr nos
eixos do silêncio. Até que Jesus se meteu com ela: «Achas bem que se
roube o pão aos filhos para o atirar aos cães?» Mas a «boca» de
resposta chegou como um raio: «E os cachorrinhos? Não são eles que
limpam a migalhice que os filhos deixam cair da mesa?»
Rezam as crónicas que Jesus partiu deliciado.
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O chamado Livro de Isaías é a fusão de três obras distintas, quanto a
autor e ao tempo da escrita (do século VIII ao século V antes
de Cristo, aproximadamente). A personalidade do autor do
«primeiro Isaías» (até ao capítulo 39) foi tão influente e
inspiradora dos outros dois profetas que toda a colectânea
passou a ser considerada como sendo desse mesmo autor. O
«terceiro Isaías» começa no capítulo 56, e reflecte as
angústias e esperanças de um povo de história atormentada,
procurando a identidade espiritual depois da dura prova do
exílio em Babilónia (por volta dos anos 500 antes de Cristo).
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