Liturgia Pagã

 

Das tripas coração

 

11º Domingo do Tempo Comum (ano A)

1ª leitura: Livro do Êxodo, 19, 2-6

2ª leitura:  Carta de S. Paulo aos Romanos, 5, 6-11

Evangelho: S. Mateus, 9, 36 – 10, 8

 

Não, não pode ser. Quem é que suporta um patrão que nos atazana os ouvidos a gritar que a terra inteira é todinha dele? (1ª leitura). E não satisfeito com o que diz, teima em levar isso a sério: para levar avante as suas ideias contra as ideias de muitos, vem inspirando, com todos os meios de que dispõe e desde tempos imemoriais, homens e mulheres, organizando-se uma espécie de corpo de elite, gente dedicada ao seu projecto (evangelho), capaz de trabalhar sem exigir salários nem fazer greve.

E as figuras principais deste «corpo de elite» quem são? Historicamente, são sobretudo homens, pouco se falando de mulheres. Nas mais diversas religiões, têm formado a classe dos sacerdotes, incluindo adivinhos, magos e feiticeiros – designados como «homens de Deus».

No Antigo testamento, como em muitos outros sistemas religiosos, vemos os sacerdotes formarem uma classe. No Novo Testamento, Jesus Cristo não instituiu nenhuma classe sacerdotal. Limitou-se ao essencial (que é sempre o mais difícil): convidou qualquer tipo de pessoa para o seguir, e constituiu apenas um grupo mais chegado – tradicionalmente os doze apóstolos (Evangelho). Mesmo que a este grupo pertencessem mulheres, seria normal, para o tempo, mencionar apenas os homens. De resto, tanto os evangelhos como o Livro dos Actos e as cartas de S. Paulo mostram o trabalho igual de homens e mulheres no serviço do «reino de Deus».

Porém, a estrutura sacerdotal cedo foi recuperada pelas primeiras gerações cristãs. Retoma-se mesmo a ideia veterotestamentária de toda uma «nação escolhida» como «propriedade especial», «reino de sacerdotes» (1ª leitura), toda ela responsável por mostrar à humanidade inteira como é bom trabalhar no mundo como se a terra inteira fosse mesmo como uma grande seara desse tal Patrão impossível de suportar.

Quando o Patrão é bom, os trabalhadores aceitam de bom grado o seu poder e até gostam de falar com ele e de o convidar para uma festa, não se inibindo de dar umas achegas para o sucesso do empreendimento. Mas, por muito simpático que seja, tão grande propaganda de tanto poder facilmente provoca um sentimento de opressão e de revolta. A revolta é tanto mais fundamentada quanto mais «o grande patrão» teima em afirmar que ele só promove a liberdade e o bem-estar de todos. Há qualquer coisa que não joga muito bem – particularmente quando olhamos para a imagem transmitida por vários elementos do tal «corpo de elite»!

S. Paulo parece preocupado com demonstrar que Deus (quem mais poderia ser o tal Patrão?) quer mesmo o nosso bem, pois até permitiu que o seu Cristo (o «ungido» como o filho mais querido) sofresse e desse a vida como que para mostrar a honestidade das suas intenções. Deus é mesmo nosso amigo – é uma afirmação mais racional do que a contrária. Mas o seu grande poder, afinal, só se revela na vontade daqueles que livremente aceitam essa amizade e, como amigos, «vão com Deus» (utilizando expressões populares), «fazendo das tripas um grande coração».

Deixa de haver razão para greves. Deus não anda à espreita das falhas dos trabalhadores, como um patrão ávido de pretextos para reduzir o salário (infelizmente, é uma visão de Deus demasiado frequente, e também uma realidade humana demasiado frequente…). Confia nos homens e dá-lhes poder. Na nossa sociedade, as pessoas investidas de poder não querem lembrar que uma das mais preciosas maneiras de pagar o nosso serviço é sentir e apreciar essa capacidade de acção. O sentimento de poder é uma das mais valiosas expressões da vitalidade do ser humano. Aliás, o princípio de uma autêntica democracia é justamente despertar e valorizar o poder inalienável de cada qual (Romanos, 12, 3-8).

Este «Senhor de toda a Terra» afirma-se desta maneira, afinal, para sublinhar que todos os seres humanos só são plenamente felizes se conhecerem e quiserem a plenitude da vida, e se tirarem as consequências do célebre «Curso breve de Gestão» (cfr. os dois domingos anteriores) – lutar pela justiça, construir os projectos sobre uma base sólida.

Só assim é que as «multidões fatigadas e abatidas» (evangelho) «se podem gloriar em Deus, por Nosso Senhor Jesus Cristo» (2ª leitura).

 13-06-2008


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