3º Domingo da Páscoa (ano A)
1ª leitura: Actos dos Apóstolos, 2, 22-33
2ª leitura: 1ª Carta de S. Pedro, 1, 17-21
Evangelho: S. Lucas, 24, 13-35
Com que emoção,
S. Pedro nos quer apresentar este retrato! (1ª leitura). Note-se que
já no tempo dele, vai para dois mil anos, muitas das figuras e
rostos teriam sido criativamente esboçados, e nem o número dos
elementos do grupo seria fácil de discriminar «clara e
distintamente». Coisas de artistas… É que naquele tempo, até os mais
positivistas dos historiadores davam muito valor à arte de descrever
não só o mais visível como à arte de iniciar os leitores ou
observadores no pouco ou nada visível mundo dos sentimentos e do
sobrenatural envolvente. Eram artistas que tinham olhos de ver, sem
precisarem de microscópios nem de telescópios.
S. Pedro está de
pé, com os onze apóstolos (Matias já tinha ocupado o lugar de
Judas), e certamente alguns discípulos, entre os quais deveria ser
notável «a quota» do «género» feminino – incluindo talvez a Mãe de
Jesus. Mais certamente, a um cantinho do grupo, os dois discípulos
de Emaús, de mochila e bordão, com o ar sorridentemente atordoado de
terem viajado com Jesus sem serem capazes de o reconhecer (pudera!
Ele estava morto e bem morto – facto nunca desmentido por ninguém da
turma radical, e só uns lunáticos de séculos futuros levantaram a
hipótese de que se calhar Jesus tinha sido tirado da cruz antes de
morrer, não se sabe se para vir a morrer a sério noutro sítio
qualquer).
Espantosamente, a
figura principal, no meio do grupo, aparece tão colorida e endeusada
que é mesmo preciso que nos digam que se trata de Jesus. Hoje em
dia, os discípulos de Emaús nem «na fracção do pão» o conseguiriam
reconhecer… tantos que são os epítetos realistas (rei do universo,
Filho de Deus, Senhor dos senhores…) e a diversidade do seu poderio
feudal: Senhor do Vaticano (quem dera…), Senhor de Lugares santos,
Dioceses e Arquidioceses, de vários «povos escolhidos», de Palácios
e Basílicas, de Universidades, Ordens, Movimentos, Bancos… para não
falar de inumeráveis «capelinhas», no sentido real e figurado.
Já S. Pedro
(ainda longe do barroco teológico emergente em S. Paulo e
florescente num Santo Agostinho) retocava jeitosamente a imagem de
Jesus com a paleta mística do Antigo Testamento – no que tinha mais
do que razão, pois não se compreende a linguagem e simbolismo dos
livros do Novo Testamento (e portanto a imagem de Jesus Cristo), sem
o contexto necessário para a compreensão mínima da mensagem de
Jesus, ou o conhecimento básico das «formas básicas de pensamento»
do meio cultural em que Jesus nasceu.
Uma ideia chave
na religião judaico-cristã é a de «desígnio de Deus»: que não se
pode distinguir do processo temporal do universo, e particularmente
do «universo espiritual» – o universo dos seres capazes de
liberdade. Por isso, conta Jeremias que «a palavra do Senhor lhe foi
dirigida nestes termos: Antes de te haver formado no ventre materno,
Eu já te conhecia; antes que saísses do seio de tua mãe, Eu te
consagrei e te constituí profeta das nações» (Jeremias, 1,4-5).
Porque é dentro
deste desígnio de Deus que todos os seres são chamados à existência
e particularmente à vida. E destes, particularmente os que são
dotados da consciência de que são vivos e de que a vida é uma
vocação para viver livremente, e que a liberdade, por sua vez, é
agir para sempre mais e melhor vida, cabendo a nós discutir e
investigar em que medida, na nossa acção, estaremos libertos de
pressões estranhas, de desejos de morte ou de ódio, do «sucesso
cego» ou de vaidade…
Cerca de um
milénio antes de Jesus, o rei David tivera consciência do desígnio
de Deus apontando para um «filho de homem» tão intimamente ligado a
Deus, que merecia o título de «Messias» (ou «Cristo»), como ungido e
representante especial de Deus, «Filho de Deus» («rei» especial,
porque se regia e levava os outros a regerem-se pela «vontade de
Deus» ou seja pelo princípio do amor-vida); e que de tal modo usou e
desenvolveu a sua liberdade, que pôde tratar Deus como «querido pai»
– «Abba» (Marcos, 14,36). Um homem tão livre e coerente na defesa
duma vida mais autêntica e justa para todos, que aceitou sofrer e
morrer, como consequência das suas posições em palavras e actos,
parecendo até abandonado, na cruz, pelo próprio «querido pai».
Não agiu como um
rei ou grande sacerdote dotado de poderes e riquezas, suficientes
para mostrar o seu apreço por Deus com presentes altamente vistosos
e luxuosos: «não foi com prata e oiro que fomos resgatados da vã
maneira de viver» (2ª leitura). E por isso Deus «lhe deu a Glória»
junto de si – o que, na tradição cristã, é o mesmo que «Deus
ressuscitou Jesus» (1ª e 2ª leituras).
A «Glória de
Deus» é a Vida perfeita – uma realidade que sai sempre desfocada ou
deturpada nestes retratos de família. Jesus vivo, como Cristo ou
Filho de Deus, não poderá nunca ser reconhecido sem mais pelos
«discípulos de Emaús» de todos os tempos (não apenas os «santos
padres», mártires e «santas virgens» … mas sobretudo e notavelmente
a imensa multidão de «cristãos comuns»).
É este Jesus vivo
que se revela a quem pergunta por ele, mesmo a quem tristemente
abandona os locais dramáticos, chorando por já não encontrarem em
quem possam confiar.
E são estes
«discípulos de Emaús» que saberão ouvir os comentários apaixonados
de S. Pedro e saberão descobrir, debaixo de muitos traços confusos,
a figura central do «retrato de família».
Porque os
retratos não são para serem idolatrados como objectos sagrados, e
muito menos como «modelos» para o futuro – o que os tornaria
ridículos. Os «retratos de família», sejam eles quais forem, mas de
modo especial os da «família de Jesus» (formada por todos aqueles
que meditam sobre o que é «a vontade de Deus» – Mateus, 12,50),
continuam a função do antigo «lar» – o «altar» onde arde sem
descanso o fogo da vida, alimentado pelos sentimentos de carinho,
ajudando-nos a compreender e defender a epopeia da vida, revendo-nos
no passado, no presente e no próprio futuro. Se o passado nos fala é
porque sabemos olhar para além do tempo: sabemos ser livres do que
está na moda ou do que agrada a quem detém o poder; como sabemos
detectar o bem no meio do mal, e ganhamos experiência para eliminar
as cores falsas da realidade, substituindo-as pelos traços e matizes
estimulantes da criatividade do futuro.
Nem é consolação
menor, podermos descobrir, entre a confusão de quem se fez ao
retrato, uns tantos vultos de discípulos mal amanhados – com os
quais nos podemos identificar na perfeição… |