(Comentário à «Liturgia Pagã»: 1ª
leitura do 2º domingo do Advento: Isaías, 11, 1-10)
Filosofia e
teologia negam a possibilidade de um «advento» de Deus: a presença
de Deus no universo transcende o tempo como transcende o espaço. Nem
precisamos de mais um menino. Aliás, quantos meninos são fruto do
amor entre um homem e uma mulher? Quantos nascem «por acaso», ou só
porque os pais são ricos ou poderosos? E quantos nascem para a
miséria? Para o sofrimento, ou para se tornarem criminosos e
causadores de catástrofes humanas? Afinal não é assim tão bom falar
em meninos que chegam… Bem vistas as coisas, todos eles, bem como os
seus pais e descendentes, não conseguirão fugir totalmente à dor,
não encherão todos os seus sonhos e sofrerão todos a morte.
Advento para quê?
Todos suspiramos por quem nos salve. É até uma das razões porque
votamos nos partidos. Mas será que acertamos com os «meninos» que
nos saem na rifa?
E como são os
«meninos» que votam? De creches de luxo, de creches de miséria, ou
de ódio, ou de «não te rales»?
Para quê votar
num «Messias»?
Alguém quer um
Messias para nos ensinar «a dar glória a Deus»? Quando muito,
jogamos nele como num totoloto, na hipótese de haver mesmo um
paraíso depois da morte…
Mas um Messias da
Justiça? Alguém está disposto a perder regalias ou haverá uma
política honestamente interessada em que desapareça a miséria?
Alguém está disposto a deixar de ganhar o mais possível – mesmo se
atirando outros para o desemprego e aflição? Porque será que só os
muito ricos são cada vez mais ricos, enquanto aumenta o número dos
cada vez mais pobres e desaparece a «classe média»? Será que os
muito ricos e poderosos se interessam pela Justiça do Messias?
E não queremos
todos – e com direito até constitucional – sentirmo-nos tranquilos
quanto à integridade física e moral? Podem os cada vez mais ricos e
poderosos roubar ao «povo» as bases, legitimamente adquiridas, de
projectos futuros para a última parte da vida? Podem extenuar uma
população, que, devido a políticas onde a dignidade humana tem pouco
valor, se torna cada vez mais pobre, menos assistida na doença e nas
deficiências de vária ordem, destituída de poder de competição a par
dos cada vez mais ricos e poderosos?
Porém, quem não
quer ter dinheiro – e cada vez mais?
Perante estas e
outras angústias, que nos interessa esse Messias, justo e simples,
distribuído pomposamente em cerimónias religiosas, quantas delas só
possíveis porque integradas no sistema dos «cada vez mais ricos e
poderosos»?
Virá o Messias
ensinar-nos a ser «bons»? Ou «bonzinhos»?
Isaías sonha com
um mundo tão justo, tão bem governado, que qualquer menino pode
andar pelos campos à vontade. Mas também fala num Messias lutador e
severo juiz. Não se pode ser bom e deixar andar um sistema que
propaga o mal.
Mas «os bons»
terão coragem de dar tempo e dinheiro para «aquilo que vale a pena»?
Saberão discutir seriamente formas aceitáveis de uma sociedade que
administre com justiça as suas cada vez mais extraordinárias
capacidades? Serão capazes de elogiar o que está bem? E de denunciar
o que está mal? E de atacar o que é manifestamente reprovável? E de
aceitar que erram e que devem continuar na procura?
Não: Deus não pode vir. Mas os Homens, de algum modo que seja,
sentem que desde sempre a humanidade andou aos encontrões com Deus –
quanto mais não seja, porque Deus só nos parece vir estragar ou
complicar a vida. E por isso se podem perguntar que história é esta
de um Messias. Afinal, pode ser a história da actualização
consciente do encontro com Deus. Que não mata os cada vez mais ricos
nem anda a levar os pobres para o céu. Mas que nos desafia a «ser
bons». |