Nosso Senhor Jesus Cristo Rei
do Universo (ano C)
1ª leitura: 2º livro de
Samuel, 5, 1-3
2ª leitura: Carta de S. Paulo
aos Colossenses, 1, 12-20
Evangelho: S. Lucas, 23, 35-43
Nunca
foi destronado porque nunca teve trono algum – e para quem o queria
seguir, falou claramente: «as raposas têm covas e as aves têm
ninhos, mas «o filho do homem» não tem onde reclinar a cabeça»
(Mateus, 8,20). Coroa, sim, mas de espinhos, e até essa por desprezo
e brincadeira maldosa (segundo Mateus e Marcos). Só o letreiro da
cruz (ironicamente?) referia o título de «Rei dos Judeus»
(evangelho) – o que, aliás, provocou uma acesa indignação por parte
dos «príncipes da Igreja» desse povo (evangelho de S. João).
Outra
ironia: foram também os «príncipes da Igreja», mas desta vez da
própria Igreja que se diz seguidora de Jesus, quem batalhou por um
reino terreno, com tronos, coroas e luxo esplendorosos, com a
desculpa de que devia «ser na terra como no céu». É caso para
perguntar: será que no céu há tanto luxo e exibição de poder? O
evangelista S. João até sublinha que a Deus ninguém o viu (1, 18; 5,
17-30). O pior é que se «perdeu o sal» (Mateus, 5,13) que dava
sentido às palavras de Jesus, quando afirmou que era «rei»,
justamente nos momentos mais humilhantes e dolorosos da sua paixão.
Curiosamente, só o «ano litúrgico A» (o primeiro de um ciclo
ternário) apresenta Jesus Cristo como o grande Rei e Juiz, no seu
trono glorioso, a condenar eternamente aqueles que não se
preocuparam com o bem comum ou não ajudaram quem precisava de ajuda;
e a premiar os que dedicaram a vida a fazer o bem, convidando-os a
participar da eterna alegria do seu reino (S. Mateus, 25, 31-46). No
relato de S. Lucas, há sangue nas palavras de testemunho e até a
promessa de entrada no «reino de Deus» dá-se entre dois
crucificados.
Ele é
Rei «a sério», precisamente porque nada tem a ver com os reis das
nações (por muito «a sério» que sejam): apresenta-se como um rei sem
trono, sem súbditos, sem soldados, sem jogadas políticas, sem corpo
diplomático...
O
evangelista S. João descreve assim o diálogo de Pilatos com Jesus:
«É como dizes: Eu sou rei! Para isso nasci e vim ao mundo, para dar
testemunho da Verdade».
Interessante associação entre rei e verdade. «Rei» e «reger» (como
«regra, recto, erigir, surgir, ressurgir», etc.) têm a mesma
etimologia, cuja ideia geral é «dirigir» na «direcção» «correcta»
(três palavras com a mesma etimologia). «Reger» é primordialmente um
acto religioso, na história das ideias: o «rei» é a encarnação
daquilo que está bem – é mais um sacerdote do que um soberano,
porque está em ligação íntima com a fonte da autoridade, que é
divina. Ele é rei porque é «o caminho, a verdade e a vida» (S. João,
14, 6). No seu reino, que é o reino de Deus, não há servos e muito
menos escravos. E justamente por isso, a grande característica da
pertença a esse reino é sabermos servir os outros.
Na 2ª
leitura, S. Paulo reflecte a cultura do tempo, que via todos os
poderes visíveis e invisíveis e todas as forças celestes sujeitas a
Deus e colaborando no governo do universo. Cristo, como o Princípio
de toda a Criação e o Princípio da Ressurreição ou Redentor, é o
Rei-Sacerdote que garante a unidade e a paz entre todas as coisas.
«Os Tronos e as Dominações, os Poderes e as Autoridades, todas as
coisas foram criadas por Ele e para Ele». Esta linguagem solene
refere a absoluta realeza de Deus, da qual a realeza ou qualquer
outra manifestação de autoridade humana é apenas uma sombra ou
prenúncio.
O Novo
Testamento considera que todas as figuras e aventuras do Antigo
Testamento são a «pedagogia» de Deus, preparando um povo para
compreender melhor a extraordinária natureza do seu plano de aliança
com a Humanidade. É este o sentido da primeira leitura, apresentando
David como pastor e rei de Israel. Como disse Jesus aos desolados
Discípulos de Emaús: «Ó homens sem inteligência e lentos de espírito
para crerem em tudo quanto os profetas anunciaram! Não tinha o
Messias de sofrer essas coisas para entrar na sua glória?» (S.
Lucas, 24, 25-27).
Pena é
que, ao longo dos séculos, muitos cristãos e até muitos dos mais
altos representantes da sua Igreja pareçam ter utilizado as palavras
de S. Paulo para construírem riquíssimos e impressionantes “tronos”,
como “príncipes” exercendo a mais rigorosa (quando não cruel)
“dominação” sobre as consciências, cultura e civilizações,
utilizando até forças militares, e jogando habilmente com os
“poderes” da terra, negando assim o sentido criador da “Autoridade”!
Foi gente que no jogo «caras ou coroas» preferiu perder a cara para
se gabar da coroa.
Apesar
de tudo, pelos milénios fora, milhões de mulheres e homens se deixam
surpreender por esse Jesus, que se afirmou como Rei justamente
quando estava a ser torturado e condenado à morte – mais exactamente
ainda, lembrando a promessa de Jesus ao bom ladrão: só é Rei depois
da sua morte. Porque é preciso passar pelo sofrimento total para ter
a autoridade de falar sobre a alegria total.
Amou,
gozou, sofreu e morreu, como qualquer um de nós. E por isso, a sua
ressurreição revelou o sentido da própria morte, como “passagem” (ou
“rito pascal”) de uma vida de horizontes estreitos para a vida da
Sabedoria perfeita – aquela Sabedoria que brincava sobre a
superfície da Terra, e tinha o seu maior prazer convivendo com os
seres humanos» (como se lê no poema do Livro dos Provérbios, 8,
22-36).
O
mistério central do Cristianismo é a revelação de Deus no comum e
frágil ser humano que era Jesus. Não é o mistério de um rei ou de um
reino: já se poderá dizer que é o mistério da subversão dos
variadíssimos reinos que nós construímos sem respeitar a «dignidade
real» de cada ser humano.
«Caras
ou coroas?» Jesus deu a cara. |