30º Domingo do
tempo comum (ano C)
1ª leitura: Livro
de Ben-Sirá, 35, 12-18.
2ª leitura: 2ª
Carta de S. Paulo a Timóteo, 4, 6-8, 16-18
Evangelho: S.
Lucas, 18, 9-14
Às vezes, até
parece que Deus abana a corda para nos fazer cair – esse mesmo Pai a
quem Jesus nos ensinou a pedir que não nos deixasse cair em
tentação. E o próprio Jesus não ia deixando S. Pedro afogar-se,
quando pretendia caminhar sobre as águas?
Ao longo dos
séculos, muita gente e célebres pensadores puseram a hipótese de que
a existência humana, com toda esta mistura de céu e terra, não passa
de uma brincadeira de mau gosto, como se não fôssemos mais do que
uns bonecos animados durante o que chamamos vida, no fim de contas à
mercê de uma força cósmica totalmente alheia às preocupações dos
míseros seres por ela produzidos, e cuja inteligência parece apenas
servir para engrossar um negro ponto de interrogação sobre o por quê
e para quê de tudo isto.
Estes míseros
seres, porém, têm dado inequívocas provas, desde tempos imemoriais
até às nossas mais arrojadas especulações, de que também sabem
procurar o que é justo. E é justo reconhecer que a experiência dessa
força cósmica tem levado a humanidade a aprofundar a experiência de
Deus, nas mais diversas civilizações e pelos mais variados tipos de
pensadores.
Em nome da
justiça, da mais «laica» justiça, temos que dar uma «chance»
à dignidade de Deus – o que significa exactamente dar uma «chance»
à nossa dignidade: pois deixaríamos de ser uns «desventurados filhos
dum big bang» – para sermos uns sábios que se debruçam sobre
o significado e implicações da própria hipótese científica por eles
próprios avançada.
Mantendo este
cenário teatral, não seríamos assim tão «míseros», mas antes os
convidados por Deus para esta espécie de «circo»: onde nos compete
trabalhar, com o esforço e o risco da nossa liberdade, no seu
projecto de partilhar connosco a plenitude da vida.
Quando nos
dirigimos a Deus, conscientes do difícil equilíbrio na corda bamba
(tanto sacudida pelas nossas falhas como pelas «partidinhas» de
Deus…), temos pelo menos a alegria de sentir uma «justificação»:
para Deus, que é o «justo» e o «fiel» por excelência, estamos no
caminho para a justiça. Assim aconteceu com o publicano (um «mísero»
cobrador de impostos) do evangelho: «desceu justificado para sua
casa», porque, reconhecendo o risco da queda, agarrou-se mais à
«corda bamba». Para Jesus, a oração do fariseu não foi aceite, como
se assentasse na eficácia de truques (mais ou menos secretos, mais
ou menos valiosos em si) para se manter «na boa relação com Deus». A
arrogância e desmedida autoconfiança pode facilmente provocar uma
queda fatal.
Será uma questão
de procurar o «passo justo» na corda bamba.
E contudo, se
pusermos de lado a notória intenção de Jesus em condenar a soberba
do fariseu, até devemos defender a oração em que damos graças a Deus
pelas coisas boas que temos e pelo bem que fazemos. Não é verdade
que precisamos de sentir o nosso valor, para nos animarmos a
continuar com determinação na corda bamba? Não podemos é comparar os
nossos passos mais felizes com os passos mais vacilantes dos outros,
como nem medir as nossas quedas pelo sucesso dos outros.
O reconhecimento
do que valemos, com todas as nossas limitações, o reconhecimento dos
«talentos» que Deus nos deu, é a verdadeira humildade. Por isso,
vemos nos textos de hoje como Deus escuta e se debruça sobre a
oração de quem é «humilde». A palavra «humilde» deriva de «humus»,
a terra, o solo que pisamos. O humilde será aquele que tem «os pés
na terra», no mau e no bom sentido: o que vive ao nível da terra,
incapaz de levantar voo, um fraco... ou aquele que tem os olhos bem
abertos para ver onde põe os pés, onde se agarrar, para onde poderá
dirigir os seus passos... Ser humilde é ter consciência da nossa
situação no universo, sem cair nem na resignação nem na presunção;
nem na ganância nem no alheamento. O pior de tudo seria, para nos
sentirmos os melhores, levar os outros a escorregar na corda bamba.
O livro de
Ben-Sirá é um dos últimos do Antigo Testamento, escrito menos de
duzentos anos antes de Cristo. Este facto valeu-lhe não ser aceite
facilmente como tendo igual dignidade à dos outros livros da Bíblia,
tanto mais que já reflectia um modo de pensar muito helenizado,
aberto às outras culturas e à sabedoria popular. É um livro muito
«humano» e portanto muito «humilde». Mas é com estas limitações que
tem ajudado quantos o lêem a firmar bem os passos na vida e a
prestar atenção à situação menos feliz de tantos seres humanos. «A
oração dos humildes não descansa até que reine a justiça» (1ª
leitura).
Neste «circo»,
Deus bate palmas ao esforço por espalhar alegria. E a grande
resposta de Deus aos «pobres e oprimidos» são as acções, tantas
vezes heróicas, de mulheres e homens em todos os tempos.
E todos nós temos
passos infelizes e horas más. De acordo com a mensagem de Jesus,
vista globalmente, o que importa é apresentarmo-nos a Deus como
somos. Parece pouco? Que respondam aqueles «humildes» que levam a
sério a aventura na corda bamba. |