Liturgia Pagã

 

«Animais doentes» ou «animais curáveis»?

5º Domingo do tempo comum (ano B)

1ª leitura: Livro de Job, 7, 1-7

2ª leitura: 1ª Carta de S. Paulo aos Coríntios, 9, 16-23

Evangelho: S. Marcos, 1,29-39

 

Há quem defina a espécie humana como um conjunto de «animais doentes». Mas não seria mais exacto dizer «animais curáveis»?

«Doente» é um adjectivo indicador de sujeição a um estado. «Curável» aponta para a capacidade de cura. Ora que tem feito o ser humano ao longo da sua história, senão desenvolver «técnicas milagrosas», não só para combater a doença como para aumentar o nível e a variedade de qualidade de vida (embora com uma justiça ainda pouco liberta de «doenças crónicas»)?

 «Técnica» e «arte» (cujo significado fundamental se sobrepõe) são dois termos extremamente analógicos, ricos de conotações e de derivações, remontando à mais alta estirpe etimológica: a raiz indo-europeia teks significa fabricar, donde «tecer» enquanto que ar remete para harmonia, originalidade, ritmo e rito… com o sentido geral de adaptação e actividade («inerte» diz o contrário). Ambas se referem ao «saber fazer» exclusivo da espécie humana, que a distancia positivamente dos outros seres vivos que conhecemos.

A técnica rege-se mais pela «ordem»  enquanto a arte gera o mundo fantástico da originalidade (ordem e arte provêm ambas do mencionado radical «ar»!). A arte, porque tem paixão, porque tem alma, porque facilmente entra em atritos com instituídas «regras do bem fazer» (a tal «lei sem espírito»), é facilmente acusada de desordem. Mas, em harmonia com a técnica, aproveita ao máximo a fonte inesgotável de energia renovável que é a afectividade: é esta energia que dá beleza ao mundo e sabor ao agir humano; é a energia que pode resistir e até transformar as epidemias de cegueira e injustiça desencadeadas por gente que tem poder. Evitando que o tratamento degenere em infecções mais graves.

Do lendário Job (1ª leitura) conhecemos a grande riqueza transformada em desgraça total. O «Tentador» do equilíbrio humano bem o quis pôr à prova: seria capaz de se manter na corda bamba? Começou por transformá-lo num monte de chagas e de miséria; e fez tudo por enlouquecê-lo, como testemunha o texto de hoje, com a angústia da solidão.

Solidão exacerbada pela presença de pretensos amigos, que mais pareciam sugar a pouca energia que lhe restava. Nem doutra maneira parecia agir o próprio Deus – o grande quebra-cabeças para quem nele quer pensar.

Job, porém, não quis perder a voz. Gritou, desde há milénios atrás, a revolta contra Deus e contra a falsidade humana; proclamou o desequilíbrio e a injustiça da vida e como todas as coisas do nosso universo são falhas de consistência.

Era o «evangelho» nascido da dor, a «boa nova» de que o Homem não é joguete de um Deus que premeia ou castiga – mas que cada um de nós pode escolher ir de braço dado com Deus, mesmo que este pareça «coxo, cego e surdo».

Estranho «quebra-cabeças» que nos incita a «evangelizar» (2ª leitura):

– Não porque eu me sinta bem – mas porque «é bom» fazê-lo;

– Não porque digam bem de mim – mas porque quero o bem dos outros;

– Não porque tenha lucros – mas porque acredito na bondade dos outros;

– Não porque tenha força – mas porque acredito que a força não me falta;

– Não porque saiba claramente o que devo fazer – mas porque me preparo para fazer o que fundamentadamente julgo ser melhor.

Para não cair, neste jogo de equilíbrio, tenho que sentir dentro de mim o centro de gravidade.

Não foi o que fez Jesus (evangelho) depois de curar a sogra de Pedro? Retirou-se para um local onde calmamente pudesse caminhar de braço dado com Deus – com essa fonte de gravidade de que só ouvimos o murmúrio da distância, mas que é a fonte da saúde: porque convida a descobrir em todas as coisas – na seiva, na flor, no fruto, na folha que cai, no sol que dá cor e na tempestade que ameaça e fortalece – a paixão pela vida e a arte de viver.

08-02-2015


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