Liturgia Pagã

 

Levar o Diabo a falar verdade

4º Domingo do tempo comum (ano B)

1ª leitura: Livro do Deuteronómio, 18, 15-20

2ª leitura: 1ª Carta de S. Paulo aos Coríntios, 7, 32-35

Evangelho: S. Marcos, 1, 21-28

  

Moisés sabia que a libertação do seu povo tinha por principal objectivo dignificar e capacitar a sua identidade, para melhor contribuir na estruturação de uma sociedade cada vez mais perfeita. Mas uma sociedade em que «cama, mesa e roupa lavada» seja um projecto social justo, seguro e rentável, precisa de o construir de braço dado com Deus. Um Deus «secretíssimo», sem nome que lhe seja adequado, sem rosto humano nem características sensíveis – e no entanto formando o recôndito mais íntimo e substancial de cada ser humano.

Porém, é muito difícil ser fiel a um projecto exigente. É necessário que «a voz de Deus» se faça ouvir de vez em quando, como estímulo. Cabe este papel aos profetas, quando se preparam e dispõem para discernir o que é bom do que é mau. Moisés advertiu que pode aparecer quem se chame profeta e não seja mais do que um interesseiro pelo poder e riqueza (1ª leitura), mas que «Deus fará surgir um grande profeta».

E sempre ficou no ar a ideia de que surgiria um profeta particularmente escolhido por Deus (o Messias). Os primeiros discípulos de Jesus reconheceram no seu Mestre a realização desta «profecia». E Jesus Cristo passou a ser «o norte» para muitos povos e civilizações.

A 2ª leitura continua, como no domingo passado, a expor um tema demasiado discutível. Se já na época se falava muito do «fim do mundo», o aparecimento de Jesus como o Messias mais fortaleceu a ideia de que tinham chegado «os últimos tempos». O próprio S. Paulo adoptou uma perspectiva errada (que mais tarde corrigiu) sobre a «segunda vinda» de Cristo: se tudo vai acabar em breve, não vale a pena a ninguém «preocupar-se com as coisas deste mundo» (2ª leitura). Diz mesmo que é melhor não ser casado para não ter que se prender às coisas deste mundo transitório e preocupar-se apenas com as coisas de Deus.

Convenhamos que esta conversa não podia agradar ao «Casamento», instituição deveras respeitável em todos os povos. Por que é que S. Paulo o havia de considerar inferior ao celibato e virgindade? Faria ele ideia de como é difícil e duro viver intimamente com alguém, cada qual com a sua vida, as suas manias e ideias, os ideais difíceis de conjugar (por muito bons que sejam…) e apesar de tudo procurando lutar juntos por uma vida melhor? Será que quem se preocupa com a felicidade da pessoa com quem vive não se preocupa 100% com Deus? E que dizer do amor aos filhos? O «hino ao amor» (1ª Coríntios,13) não será o amor profundamente humano? Por outro lado, não é verdade que muitas pessoas «não perdem tempo» com os outros e muito menos com a vida de casados, mas para se dedicarem aos «negócios deste mundo» e de modo nenhum a Cristo? Olhar para Deus não é descurar o mundo – mas cuidar dele com justiça.

Mas «o grande profeta» que nos põe em contacto com Deus é aquele de que fala o evangelista Marcos. Numa das suas pequenas narrativas, descreve um caso de demónios («espíritos impuros») que podem possuir as pessoas, fazendo-as contorcer-se e «espumar» (crença antiga e muito pouco rigorosa).

Jesus tinha de facto o poder de curar males físicos e espirituais mas queria sobretudo que nos libertássemos de ser «possessos» de «forças impuras» como o ódio e injustiça. Mostrava assim como se preocupava seriamente com as coisas deste mundo, para que nos sentíssemos felizes de corpo e alma. E foi ao agir para bem de quem sofria, que a sua missão foi exaltada. Justamente quando um «possesso» (dos tradicionais) ficou livre (sempre a libertação!), o próprio «demónio», despeitado, é que «desmascarou» Jesus, gritando: – «Tu és o Santo de Deus!»

Moral da história: Quando se enfrenta o mal, é o próprio mal que «denuncia o bem». Mas é preciso que o Bem não venha misturado com jogadas de poder: a «autoridade» do Bem é valer por si próprio, como Verdade e Justiça, sem receios nem arrogância (ou não seria «bem») mas libertando e fazendo crescer.

E é assim que se leva o Diabo a dizer a verdade…

01-02-2015


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