Liturgia Pagã

 

Lucas, o «cronista do reino»

Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo (ano C)

1ª leitura: 2º livro de Samuel, 5, 1-3

2ª leitura: Carta de S. Paulo aos Colossenses, 1, 12-20

Evangelho: S. Lucas, 23, 35-43

  

Até lembra aqueles célebres «cronistas do reino» dos primeiros reis…

A verdade é que Lucas é o único evangelista que apresenta, logo ao princípio (1, 1-4), o propósito de elaborar uma crónica, com a maior exactidão possível, dos acontecimentos que provocaram a fé em Jesus Cristo.

Reler as suas «crónicas» (Evangelho e Actos dos apóstolos) com toda a calma é um trabalho para toda a vida! Nem deve ser possível abordar objectivamente a sua obra, pois, como se diz, «mexe com a gente»: o tema religioso é eminentemente perturbador (aliás, a própria paz que nos pode trazer só tem solidez se não é uma paz dormente…); e os evangelistas deixam muitas questões em aberto – não só sobre o sentido a atribuir ao texto, como também por haver trechos altamente improváveis do ponto de vista histórico e até contraditórios. Enfim: é um cronista próprio do tempo, preocupado sobretudo em pôr em destaque o valor da pessoa ou mensagem principal.

(Note-se que nem os historiadores actuais se conseguem libertar de todos os preconceitos – e muito menos o consegue a população em geral! Pelo que não podemos criticar os autores de «livros sagrados» com ligeireza).

No evangelho de hoje, o pedido do «bom ladrão» revela o sentido fundamental das crónicas de Lucas: é pela morte e ressurreição, que Jesus adquire um poder próprio de rei. E a resposta atribuída a Jesus («hoje estarás comigo no Paraíso») é uma feliz contraposição ao «Paraíso perdido» – um dos principais mitos sobre a formação da Humanidade, que se encontra, com variações, nas civilizações mais antigas. Contra essa frustração inicial, Jesus Cristo aponta-nos um paraíso renovado, que nos permite, desde já, viver a plena liberdade de quem vive na liberdade de Deus e, futuramente, livres da morte e de qualquer espécie de sofrimento.

Na «entrada triunfal em Jerusalém» (19, 35-40), Lucas é o único evangelista que apresenta Jesus como um «rei que chega em nome do Senhor». O «nosso cronista» compraz-se em pôr Jesus em contraste com os reis deste mundo: obcecados pelo poder, pela riqueza, pelo luxo, pela corrupção e desinteresse (quando não opressão) para com os mais desfavorecidos. A autoridade real de Jesus manifesta-se na maneira como ensina e se aproxima das pessoas. Com os seus poderes especiais, cura os males do corpo e da alma. Lucas vê nisso o sinal de como o «reino de Deus» está activo entre nós, abrindo caminho à vitória sobre toda a espécie de mal. Quem envia Jesus é nitidamente a favor da vida. Uma vida com relações humanas justas, sem exploração atentatória da dignidade humana, sem «puros» e «impuros», onde se é «bom» ou «mau» apenas por decisão própria. Não guardando rancor para com os inimigos e evitando fazer mal a quem quer que seja, «todos seremos filhos do Altíssimo» (6, 34-35).

A festa litúrgica de «Cristo Rei» corre o risco de alimentar um triunfalismo religioso, a dois passos do fanatismo – perigo também real no seio do catolicismo. Ora o «reino de Deus» não é apresentado como conceito: manifesta o optimismo do plano de Deus, que se vai realizando com o contributo de «todas as pessoas de boa vontade» (os destinatários da universalmente famosa encíclica de João XXIII – Pacem in Terris). Os conceitos facilitam o fixismo, o legalismo e os rituais pouco interiorizados, padecendo de toda a imprecisão e debilidade próprias da expressão humana. Por isso a fé não se pode fundamentar em abstractos sistemas lógicos nem sequer nas mais sublimes construções doutrinárias. Estas são testemunhos de actividade passada. A fé, porém, define-se pela acção contínua, como o amor.

A «crónica do reino de Deus» é a crónica do «espírito de Cristo» vivente – e que alimenta a imprescindível diversidade dos dons de quem trabalha nesse reino.

24-11-2013


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