Domingo da Santíssima Trindade (ano C)
1ª leitura: Provérbios, 8, 22-31
2ª leitura: carta aos Romanos, 5, 1-5
Evangelho: S. João, 16, 12-15
A razão humana não se poupa, no esforço fantástico de procurar e
desbravar caminhos entre o ser humano e Deus: querendo falar de
Deus, embora reconheça que dele não se pode falar; e rascunhando uma
imagem de Deus, embora sabendo que dele não se pode fazer imagem.
Tenha-se presente que o conceito de «Santíssima Trindade» ou «Deus
trino e uno» não consta no Novo Testamento. É fruto de legítima e
enriquecedora especulação filosófico-teológica, que também procura
entender como é que as diferentes religiões (especialmente o
Cristianismo e Islamismo, filhos do Judaísmo) nos ajudam a
relacionar-nos com a única realidade que pode sustentar o universo e
dar sentido a este mundo.
A preocupação central dos primeiros pensadores cristãos terá sido a
de entender «como» se pode atribuir a Jesus um «estatuto divino»,
perante essa única realidade e suprema unidade, totalmente acima da
compreensão humana.
Num dos livros do escritor Mia Couto, aparece um velho homem para
quem falar de Deus era como segurar um ovo na palma da mão: se não
damos atenção, deixamo-lo cair; se o apertamos com força, acabamos
por o esmigalhar.
Sem dúvida que o conceito de uma «Trindade que é Unidade
indivisível» é pelo menos estranhíssimo. Mas se achamos ridículo ou
que não merece a pena o esforço de falar de Deus, deixamo-lo cair; e
se o queremos prender no imperfeito colete de forças dos nossos
conceitos e imagens, é como se o estivéssemos a esmigalhar.
Esse Jesus a quem, entre outros atributos, se chamou «Cristo»,
«Senhor» e «Filho de Deus», quis pôr Deus «ao nosso alcance», como
«na palma da mão». Para tanto, insistiu na única força que junta
cuidado e firmeza: o amor. É verdade que já o nosso poeta Camões se
queixava de como é «em si tão contrário o mesmo amor»... De facto,
conhecemos o amor mas não o podemos compreender – mas não será por
isso mesmo a melhor «definição» de Deus? É preciso humildade para
amar o amor e «conhecer» assim, embora não perfeitamente, quem nós
somos e quem é Deus.
Em Jesus Cristo, é-nos dado a conhecer que Deus «põe as suas
delícias em estar com os seres humanos» (Provérbios, 8, 31), mostrando
que todos nós existimos como a «explosão» de um «infinitamente
denso» amor.
Jesus foi na verdade «um rasgão» no mistério de Deus. E de tal modo
se revelou «o caminho» que, depois de crucificado, foi
«ressuscitado» ou «exaltado» por Deus, vivendo doravante, no dizer
de grandes teólogos, «segundo o modo de existência e de agir de
Deus».
A tradição cristã acabaria por ver em Jesus a encarnação perfeita da
Sabedoria ou «Espírito» de Deus (veja-se o domingo de Pentecostes),
e desta profunda experiência religiosa terá nascido a
complicadíssima expressão que sustenta o dogma da «Santíssima
Trindade».
Porém, o Novo Testamento não se preocupa com dar definições de Deus,
mas sim com enriquecer e tornar atraente a experiência do encontro
com Ele. Nem dá definições do ser humano – que é, «à semelhança» de
Deus, um mistério: não cabe em fórmulas psicológicas, sociológicas e
muito menos estatísticas – só «esmigalhado» é que encaixa nesses
conceitos ou em anti-humanos programas político-económicos. Compete
a cada um de nós admirar e respeitar a riqueza do outro, como se
fora também «um ovo na palma da mão».
26-05-2013 |