4º Domingo da Quaresma
(ano C)
1ª leitura:
Josué,
5, 9-12
2ª leitura:
2ª
carta aos Coríntios, 5, 17-21
Evangelho:
S.
Lucas, 15, 1-3. 11-32
Que a fé é um grande salto, ninguém o nega.
Um salto para o escuro? Para o desconhecido? Até os místicos
sentiram que a luz de Deus é para nós escura. Nem a pessoa mais
amada é cabalmente conhecida – é sempre necessário um acto de fé, o
que faz do confiar em alguém uma aventura.
O «Deus desconhecido», porém, até soma «boas razões» para a gente se
aventurar: Ele é o sentido e fundamento de toda a confiança e
esperança, da decisão e da constância; para Ele não há morte e
ninguém se perde. Negá-lo é negar toda a esperança. Ele é a fonte da
riqueza infinitamente diversa da interioridade de cada qual – essa
interioridade onde nascem as temerosas angústias, por isso tão
difíceis de partilhar, e onde aparece a luz cuja beleza não
conseguimos exprimir.
Neste jogo de noite e luz, é que «o povo escolhido» atravessou o
deserto e celebrou a primeira Páscoa na «terra prometida» (1ª
leitura). Que grande «salto»!
O termo hebraico para «Páscoa» (pesah) é de etimologia
incerta, mas o próprio livro do Êxodo o aproxima do verbo pasah,
que significa «saltar» ou «passar por cima» (na noite em que Israel
saiu do Egipto, o «anjo exterminador» saltou – poupou – as casas
marcadas com o sangue do cordeiro). Foi sobretudo S. Agostinho quem
privilegiou o sentido de «passar», sublinhando a semelhança entre a
«passagem do Senhor» pelas casas egípcias, a «passagem do mar
vermelho», a «passagem» da paixão e morte de Cristo para a
ressurreição e a nossa «passagem» de tudo o que é morte para tudo o
que é Vida.
Com Josué, o povo eleito «saltou» para um novo estádio de
amadurecimento: não mais será o povo infantil dependente do maná
«caído do céu». Doravante, alimentar-se-á do fruto do seu trabalho.
Com Jesus Cristo, S. Paulo vê que se deu o mais radical de todos os
saltos – para «uma nova criatura», para uma nova maneira de olhar e
de viver a vida.
E S. Lucas? Todo o evangelho de hoje é uma variação à volta de
«saltos radicais»:
Antes da parábola do «filho pródigo», Jesus fala da alegria do
pastor que “esquece” as 99 ovelhas bem comportadas, ao encontrar a
ovelha perdida; e da alegria da dona de casa que se esquece do
prazer de possuir muitos bens, ao encontrar a moedinha perdida – e
até convida amigos e a vizinhança para «saltarem» em festa!
Como quem diz: não entra pelos olhos dentro que Deus é tão amigo que
é o primeiro a «saltar ao nosso encontro»? (O texto do evangelho põe
o Pai a correr – coisa inaudita num senhor de respeito – ao encontro
do filho, saltando para os braços um do outro). O salto radical do
filho é apoiado pelo amor radical. Amor que não se deixa levar pelas
aparências e que não confunde a justiça dos sentimentos de apreço ou
de repulsa. Um amor difícil de equilibrar, mas que é o desafio
lançado aos seguidores de Jesus Cristo.
Também precisamos de um bom salto interior – até para sabermos
apreciar os «saltos» dos outros, bem ou mal dados. Nestas três
parábolas, Jesus invectiva os responsáveis religiosos e aqueles que
descansam numa «fé tranquila», olhando de soslaio para os que não
pertencem ao «grupinho».
O irmão mais velho do «filho pródigo», talvez por levar uma vida sem
«sobressaltos», nem o quis reconhecer como irmão – «esse teu filho»
depravado, diz ele ao Pai; mas o Pai corrigiu: «este teu irmão»
saltou para a vida – salta também para a festa!
Curiosidades
Vale
a pena um bocadinho da etimologia de «saltar»: a partir do
indo-europeu (sel), encontramos no latim salire (sair,
mas já com o sentido de saltar, brotar, palpitar); donde deriva
saltare (saltar e dançar) e ainda o divertido como irritante
saltitare. Em português, a ideia geral parece ser a de movimento
repentino, normalmente elevando-se do chão, com sentidos figurados
como «saltar na carreira», «saltar um assunto» (ou uma pessoa, por
distracção ou desprezo). Dos bons e maus sentidos falam derivados
como exultar, insultar, assaltar, saltear, saltimbanco…
(Tem a sua graça que um termo latino ainda usado no século XX para
designar um lugar de chefia – praesul – signifique
exactamente «aquele que vai à frente a dançar», como o sacerdote
principal de primitivas procissões…).
«Radical», toda a gente sabe que vem de radix (raiz), donde
ramo e raça. Mas é de salientar o sentido de «fundamental», de ir ou
vir até à raiz ou fonte, ou de se levar até ao limite extremo.
Facilmente designa a forma mais pura e mais rigorosa de alguma coisa
(como «reforma radical»).
10-03-2013 |