Liturgia Pagã

 

Passe no deserto o dia dos namorados

1º Domingo da Quaresma (ano C)

1ª leitura: Livro do Deuteronómio, 26, 4-10

2ª leitura: Carta aos Romanos, 10, 8-13

Evangelho: S. Lucas, 4, 1-13

 

Não é só uma experiência radical! É o lugar sonhado de plena libertação – numa paisagem totalmente às avessas da habitual. É a imaginação livre para criar miragens e falar com elas e perder-se nelas. Enfim: o lugar ideal para namorar!

E Deus bem que tirou e continua a tirar partido do deserto:

O livro do Deuteronómio (que significa «segunda lei», renovação da espiritualidade da «nação eleita») estabelece dias de festa para lembrar a fidelidade do Deus libertador e fortificar a identidade histórica e cultural, contando-se às novas gerações as experiências radicais – desde uma «luta com Deus» (Génesis, 32,23-33), até ser «namorada» por Deus durante «quarenta anos» de deserto, cheios de promessas, desquites, ameaças e perdões. O profeta Oseias (2,15-18) põe Deus a falar assim: «Hei-de castigá-la (à «nação eleita») por correr atrás dos seus amantes e me esquecer. É por isso que a vou seduzir, levando-a para o deserto e falando-lhe ao coração. E ela se encantará comigo como nos tempos da sua juventude».

De facto, «a nação eleita» tinha começado a emigrar para o Egipto por volta de 1700 a.C.. Formou um povo numeroso e com relativo sucesso, mas depressa verificou que o paraíso de Adão e Eva foi efectivamente eliminado do cenário humano. Foram precisos 400 anos de muitos e repetidos desenganos (pois até nos habituamos a uma situação de “infelizes”…), para os Israelitas se unirem eficazmente contra a opressão e largarem o Egipto. Tinham por líder Moisés e o caminho conveniente era o deserto.

Quantas vezes os profetas do Antigo Testamento apontam o dedo contra a imprudente confiança da «nação eleita» na presumida aliança com nações poderosas, mais interessadas em ter gente submissa a oprimir com tributos aviltantes.

Na realidade, não podemos confiar que sociedade alguma ponha o céu ao nosso alcance: cada um de nós é que é o único construtor dos alicerces de um céu «fora do alcance da ferrugem e dos ladrões» (Lucas, 12,33), um «céu» ao nosso alcance já na terra, que depende da coragem, esperança e de querermos bem uns aos outros.

Jesus Cristo mostrou, com palavras mas sobretudo com a vida, que não é utopia o projecto de viver plenamente, com uma alegria que não esmorece. E também ele namorou, no deserto, esse plano de vida. Quis ter a certeza de que a vaidade, a riqueza, a boa-vida… não o conseguiam demover. Decidiu que o que mais valia a pena era viver como viveu. Ganhou assim credibilidade: deu prova do realismo e prudência que devem acompanhar os mais incansáveis ideais; e forjou com segurança um projecto suficientemente sólido para vencer as investidas do comodismo.

Pelos séculos fora, muita gente se retirou no deserto, ou até mesmo aí passou a vida, para melhor avaliar a autenticidade da sua força interior ou dispor da clareza e isenção necessárias para medir os prós e contras de planos e empreendimentos. Também um plano a sério com Deus precisa de uma relação adulta com Ele. S. Lucas (14,28-30) atribui a Jesus esta parábola: «Quem dentre vós, querendo construir uma torre, não se senta primeiro para calcular a despesa e ver se tem com que a concluir? Doutro modo, toda a gente troçará dele por não saber acabar o que começou».

Não se deixou levar – como não quer levar a ninguém com palavras lindas ou promessas espaventosas. Ora no campo da política e da ideologia (a que se reduz muitas vezes a religião), não somos nós volta e meia objecto de namoro por quem apenas nos quer levar para apoiarmos interesses que não são nossos?

Como em todo o namoro, é de extrema importância sentir-se em comunhão pela palavra e pelo silêncio, no sossego e na aventura. No deserto, longe das luzes que ofuscam, é que avaliamos se se trata de namoro a sério… E se vemos, com a inteligência e coração, que vale a pena, é também no deserto que orientamos as nossas energias do modo mais eficaz. Como aconteceu com Jesus Cristo, há todo o mundo à espera dos resultados do nosso dia no deserto.

17-02-2013


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