5º Domingo do tempo comum (ano C)
1ª leitura: Isaías, 6, 1-8
2ª leitura: 1ª Carta aos Coríntios, 15, 1-11
Evangelho: S. Lucas, 5, 1-11
Por alguma razão se diz «antes só que mal acompanhado». E a verdade
é que há muita gente para quem Deus não passa de uma péssima
companhia – se é que chega a ser companhia alguma. Acresce que o
natural «desejo de Deus» esmorece perante a mesquinhez e negativismo
de muitas imagens ou maneiras de falar de Deus (por parte até de
quem O devia «representar» de modo especial).
Porém, muitas vezes, nem queremos pôr a hipótese desse «amigo
escondido», com justificado receio de que não concorde com os nossos
projectos ou que nos obrigue a pensar e a arriscar, a sair da
tranquilidade do nosso cantinho.
Isaías viu-se a braços com uma presença estranha, pertinazmente
importuna, descrita com as usuais e impressionantes imagens de
«grande rei do universo», rodeado de fogo, aclamações e de «seres
ardentes» (significado do termo hebraico «serafim») que Lhe chamavam
«Santo» três vezes (o grau máximo de perfeição) – antiga fórmula de
culto, anterior a Isaías e não exclusiva do judaísmo, e que
prevaleceu na liturgia cristã.
Havia razão para ter medo: acreditava-se que a visão da
transcendência divina era de tal modo tremenda que podia aniquilar o
ser humano. Por isso, esse profeta precisou de muita coragem (ou
terá tido o atrevimento) para aceitar o desafio lançado pelo próprio
Deus – mas sobretudo porque teve a experiência de que o encontro com
Deus também podia purificar e salvar. Partiu então a anunciar que
vale a pena a amizade de Deus, que nos inspira o olhar positivo
sobre a vida (a pesar de tudo) e a saber agir na construção de uma
sociedade justa.
«Santo» e «sagrado» (em inglês «holy») derivam do mesmo radical
indo-europeu («sak» e «sank»), já com o sentido de consagrar,
dedicar, apontando para algo aparte e inviolável (o radical de «holy»
tem o sentido de completo, em perfeito estado, como se vê em «whole»
e «health»).
O «Santo de Israel» não encaixa, portanto, nas medidas humanas (está
acima de toda a relatividade). Como entender que possamos travar com
Ele uma relação de amizade? Mas, na verdade, Ele é amor, prazer,
força, salvação e apoio absolutos, «rochedo inabalável»,
«benevolência e fidelidade eternas». Ao longo da Bíblia, e
particularmente nos Salmos (como no da liturgia de hoje), são
frequentes estes conceitos.
Na 2ª leitura, encontramos a forma provavelmente mais antiga do
credo cristão, que vê na morte e ressurreição de Jesus a «prova» de
que ele é «o Cristo de Deus» (o «Messias»), a sua perfeita
revelação. S. Paulo já não vê barreiras entre os seres humanos e
Deus. Confessa-se «indigno de ser chamado apóstolo» por ter
perseguido os cristãos e se sentir, perante a perfeição de Deus,
como um ser mal formado (um «aborto», como ele próprio escreve), mas
que mesmo assim a Vida divina se serve dele para comunicar mais
vida. E cultivou esta amizade bem exigente quanto plenamente
gratificante.
E que dizer de S. Pedro? Já andava desconfiado sobre quem Jesus
seria, mas ficou aturdido ao dar-se conta de que «o Santo de Israel»
se manifestava no Mestre. Caiu de joelhos e gritou: «Afasta-te de
mim!»
Não lembra o espanto de Isaías e Paulo?
Porém, os tempos eram outros e Jesus deu-lhe a volta: «promoveu-o» a
«pescador de homens» – e por isso o ensinou, bem como aos
companheiros, a não se entregarem ao desânimo, mesmo quando o
trabalho aturado de uma noite inteira não dá nada que se veja.
O amigo Deus aguenta bem os nossos defeitos – mas sem a gente teimar
no erro, por caturrice ou preguiça.
Na história do cristianismo, Deus é muitas vezes apresentado como
avesso aos nossos prazeres. Ora o nosso amigo Deus só quer que em
tudo, desde a brincadeira ao trabalho mais «sério», olhemos os
outros como amigos também. O mal é magoar os outros, impedi-los, em
todos os tipos de relações humanas, de se realizarem e ser felizes a
100%.
Bem vistas as coisas, Deus não será assim tão má companhia…
10-02-2013 |