Baptismo do Senhor (ano C)
1ª leitura: Livro de Isaías, 42, 1-7
2ª leitura: Actos dos Apóstolos, 10, 34-38
Evangelho: S. Lucas,3,15-16.21-22
Mais coisa menos coisa, pelos 30 anos foi Jesus baptizado por S.
João («o baptista»). A figura de João impressionou fortemente o povo
judaico, e o próprio Jesus se sentiu atraído, de tal modo que
aceitou o seu baptismo e a mensagem central: a «conversão»
(«metanóia») necessária para nos libertarmos do que nos impede de
construir um futuro novo. João era um profeta severo, atacando a
presunção dos «piedosos» que se refugiavam no legalismo e na
tradição para não terem o trabalho de dar à vida uma orientação
nova, capaz de produzir bons frutos (Lucas,3,8-9).
Um baptizado controverso: as primeiras comunidades cristãs não
podiam crer que Jesus fosse apenas «mais um profeta» na linha de
João – mesmo que fosse o maior. Sobretudo depois da «ressurreição»,
Jesus Cristo só podia ser «incomparável». Era uma questão do
«estatuto» de Jesus – o Messias, o único caminho de salvação. Para
as primeiras comunidades cristãs, seria mais fácil deixar de lembrar
o baptismo de Jesus, de tal modo era difícil de o «encaixar» na
ideia que dele faziam. Se tal não aconteceu, é porque estavam
perante um irrefutável facto histórico, tão importante quanto
difícil de interpretar – mas não é verdade que até a vida de
qualquer pessoa não pode ser interpretada apenas sob o prisma da
lógica?
O relato de Lucas (e ainda mais o 4º evangelho, o último a ser
escrito) reflectem esta preocupação: neles, o próprio João Baptista
reconhece que a sua missão não se pode comparar à de Jesus. Por
outro lado, este começo da «vida pública» é recheado de imagens
impressionantes sobre a dimensão divina da missão de Jesus. Deste
modo, os primeiros cristãos podiam ficar plenamente confiantes de
que, com Jesus, se tinha iniciado verdadeiramente uma nova época.
Porém, o Baptista ficou sempre como aquele que tinha começado a
anunciar «a boa nova» (Lucas,3,18).
Assim realizou Jesus o primeiro acto da sua carreira: anunciar o
«reino de Deus» – essa nova maneira de viver a vida de braço dado
com o mais fiel e o mais desconcertante dos amigos. Jesus viu nesse
amigo um pai sempre atento mas sempre discreto, que deixa aos
«filhos» todo o espaço de manobra. É com esta liberdade que podemos
«tirar partido» da tão confortante como perturbadora «amizade» com
Deus, construindo com persistência o mundo da justiça (1ª leitura).
Neste novo tipo de relação com Deus é que Jesus se avantaja
relativamente ao seu «precursor». João Baptista apelava à conversão
que nos permite enfrentar o «machado» do juízo de Deus. Jesus
prefere imagens de amor e reconciliação, que permitem uma confiança
inabalável no bom sucesso dos nossos projectos – porque também são
os projectos de Deus.
Na 1ª leitura, aparece o primeiro dos quatro poemas do «servo de
Javé», essa figura misteriosa, difícil de identificar, na qual,
desde os primeiros tempos, os discípulos de Jesus leram a
prefiguração do mestre como «servo perfeito» e «filho muito amado».
Estes poemas aprofundam, até de modo chocante, o tema da justiça – e
a ideia de «comunidade justa».
Nos ritos actuais do Baptismo de crianças, sobressai a importância
de o compromisso pela justiça ser conscientemente aceite pelos pais,
padrinhos, e toda a comunidade envolvente. É portanto a comunidade
que está em jogo e que precisa, para se desenvolver, de reconhecer e
fazer crescer o valor dos outros. João alegrou-se porque estava a
preparar o terreno para alguém «maior do que ele» – tão grande que
manifestou publicamente quanto devia ao trabalho de João Baptista.
(Quanta gente «do topo» aceitará os dons superiores de alguém que
vem trabalhar no grupo? Quantos serão capazes de ajudar os outros a
multiplicarem os seus talentos, sobretudo quando isso implica ir-se
retirando do primeiro plano? E quantos darão valor ao que devem aos
outros?).
A comunidade justa «não quebra a cana fendida nem apaga a torcida
que ainda fumega». De tudo procura tirar proveito para mais e
melhor, «sem desfalecer nem desistir». A família é o primeiro
exemplo do esforço por uma comunidade assim, beneficiando da energia
da afectividade. Nela, como também numa comunidade que se diz
cristã, deveríamos encontrar a força de caminhar juntos, no
misterioso projecto da vida, deixando às novas gerações o testemunho
de que «vale a pena viver».
13-01-2013 |