Liturgia Pagã

 

«Quem virá a ser este menino?»

Nascimento de S. João Baptista

1ª leitura: Profeta Isaías, XLIX, 1-6

2ª leitura: Actos dos Apóstolos, XIII, 22-26

Evangelho: S. Lucas, I, 57-80

 

A figura de João Baptista no seu tempo e o seu lugar na liturgia e nas festas populares sempre me pareceram uma estranha aliança. A sua vida pessoal foi extremamente austera, os textos litúrgicos falam-nos de alegria e penitência, e a festa do povo – a figura central em todas as festas cristãs, pois foi pelo povo que Jesus morreu e ressuscitou – junta a antiquíssima celebração do Sol no máximo esplendor à memória do nascimento do maior entre todos os profetas antes de Cristo. Um profeta pouco mais novo do que Jesus e que O apresentou a todos como quem guardasse, para nos entregar na sua mão rude e forte, o Sol divino.

João deixou marcas tão fortes nos seus discípulos, que eles se organizaram numa comunidade específica e que até viria, pela corrupção de alguns, a entrar em conflito com a comunidade cristã dos primeiros tempos, não aceitando que Jesus fosse considerado mais importante do que João. Este apresentador de Jesus quis enviar-lhe dois dos seus discípulos com a pergunta: «És Tu o que está para vir, ou devemos esperar outro?» (Lucas, VII, 19). João aceitara plenamente a sua vocação, mas não lhe foi dado nenhum conhecimento superior, que também não foi dado por Jesus aos seus discípulos. O profeta verdadeiro apenas ouve e transmite, com humildade e coragem, a palavra de Deus. Jesus mostrou, citando a Bíblia, que era bem Ele o Cristo anunciado.

Logo a seguir, foi a vez de Jesus perguntar à multidão que o cercava: «Que fostes ver ao deserto? Uma cana agitada pelo vento? Que fostes ver, então? Um homem vestido com roupas finas? Os que usam trajes sumptuosos vivem regaladamente e estão nos palácios dos reis. Que fostes ver, então? Um profeta? Sim, Eu vo-lo digo, e mais do que um profeta. É aquele de quem está escrito: Vou mandar à tua frente o meu mensageiro, que preparará o caminho diante de ti» (Lucas, VII, 24-27).

João remata com chave de oiro o Antigo Testamento, e surge a novidade absolutamente extraordinária do tempo de Jesus (que é o sentido do versículo 28).

Novidade que João anunciou com a sua vida no deserto, a sós com Deus e sem a poluição ruidosa da ganância e do orgulho, e ao baptizar o próprio Jesus com o «baptismo de penitência».

Vem o Sol na sua força – temos que abandonar roupagens e atitudes inadequadas. É o que significa a palavra «penitência»: em hebraico é mudar de caminho, tornar atrás e, na esfera religiosa, voltar-se para Deus. O termo grego entrou na moda: metánoia é mudar de vida, de atitude; “fazer penitência” não é um ritual de sofrimento ou autopunição, teoricamente discutível e de resultados duvidosos. É algo de muito mais difícil: reconhecer que não estamos a seguir o caminho da justiça e que não bastam boas intenções. No século III, Tertuliano chama à penitência um «baptismo trabalhoso». Trabalhamos para conquistar a alegria de Cristo, que acusava a hipocrisia da elite religiosa dos últimos tempos do Velho Testamento: quando orardes, quando derdes esmola, quando jejuardes... não o façais com ostentação para que os outros admirem a vossa “santidade”(!); fazei algo muito mais difícil: sede bons (Cfr. S. Mateus, VI).    

O menino da festa de hoje viria a ser o estafeta entre a velha e a nova aliança. Quando passou o testemunho, deixou-se apagar como o sol que vai perdendo a sua importância, até que outro menino nasça no dia mais pequenino e cresça como um  Sol sem ocaso, como se diz nas festas da Páscoa.

Quem viria a ser o menino de 24 de Junho? Um exemplo insuperável do que é vocação: não se prendendo com nada que não fosse o espírito de Deus. Tornou-se um Homem autenticamente virgem: com a força de quem espera o momento certo para semear a nova terra, preparada já para produzir muito fruto. É o menino que nos avisa como a alegria, as nossas festas, os nossos amores, o amor... são para levar “a sério”, como frutos que alimentam a humanidade sem o veneno do artificialismo, da superficialidade e dos jogos de poder que fazem apodrecer o melhor fruto. Virá a ser o adulto que morreu por denunciar os desvios dos poderosos. Ele vem brincar connosco, porque a própria liturgia devia ser uma festa e porque brincar a sério é sabermos as razões por que vale a pena brincar. Basta ler o “testemunho” que ele nos passou...

17-06-2012


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