As «Perguntas e Respostas sobre a Eutanásia», da Conferência
Episcopal Portuguesa, foram resumidas num folheto sem data,
distribuído há vários meses. Uma iniciativa muito positiva. Dele fiz
cuidadosa leitura, cujas anotações aqui são desenvolvidas. O grande
motivo da minha reflexão é verificar como é difícil, nomeadamente ao
clero católico, ser fiel ao rigor «filosófico» da linguagem mas
fugindo ao «estilo eclesiástico» para saber explorar «linguagem
franca». Sobretudo quando o tema é conflituoso, a ser abordado com
todo o cuidado e não escondendo a dificuldade de argumentar e
definir. Um tema que já aparece no séc. II, com Suetónio, passando
pela «Utopia» de Thomas More (séc. XVI) até aos nossos dias.
O folheto em questão merece ser discutido e criticado. A primeira
reacção geral foi a de sentir que os «autores» ainda não sabem
«ouvir bem» a «oposição», sem preconceitos e sem se assumirem como
juízes supremos. Não há bom diagnósticos em paciente auscultação.
Este artigo reflecte diversas posições em discussões informais. Com
liberdade e profundo respeito por todos. Cada frase representa uma
posição, por vezes sem aparente ligação lógica. Pressupõe-se o
conhecimento do folheto.
Eutanásia, aborto, suicídio… referem situações-limite, que apenas
podem ser analisadas com muita honestidade e humildade. O resultado
desse estudo deverá ser, primeiramente, o máximo respeito pelas
pessoas e o reconhecimento da impenetrabilidade dos sentimentos.
Portanto, quer o Estado, quer a Igreja, quer qualquer outra
instância humana NÃO PODEM IMPOR procedimentos concretos, sem mais.
Muito menos «as direitas» ou «as esquerdas», que abusam de temas
semelhantes para atrair adeptos ou combater «instituições
reaccionárias» (preferivelmente religiosas?).
1ª questão do folheto: O QUE É?
A eutanásia é um profundo e natural desejo do ser humano. Consciente
de que nasce e morre por natureza, procura, como animal racional,
não só eliminar sofrimento como potenciar os factores de agrado
durante a sua existência.
«Suicídio assistido» NÃO É EQUIPARÁVEL A EUTANÁSIA. A comparação é
forçada (por motivos ideológicos?). Quem pode dar definições
exactas? Nem parece anti-humano recusar o prolongamento da vida –
sem melhoria da «qualidade de vida» (cada qual é que sabe o que é).
Aliás, a Associação de Médicos pretende que estes sejam
independentes de Leis (pouco racionais!) e atendam à RAZOABILIDADE
da posição do doente que diga manifestar-se em «plena consciência»
(tê-la-ão os nossos políticos, os médicos «de 10 minutos», os
líderes religiosos…?). Quanto à «obstinação terapêutica», que impede
«que a natureza siga o seu curso», falta acrescentar os consequentes
sacrifícios de ordem financeira e emocional. É possível «educar»
para o maior bem de toda a Humanidade, sem limites de tempo e de
espaço. A «minha» qualidade de vida implica a qualidade de vida de
todos os mais. O que fica dito concorda com o parágrafo dos
«cuidados paliativos».
2ª questão: É LÍCITO PROVOCAR A MORTE DE UMA PESSOA A SEU
PEDIDO?
Se a justificação for o mais possível razoável, SIM. (Porém, a
expressão «é lícito» já implica uma lei previamente aceite). O
perigo vem dos «assistentes». Não faz sentido falar de «direito à
vida» mas sim de DIREITO A QUALIDADE DE VIDA. Quanta gente não foi
internada como louca – por motivos políticos? E pelos mesmos
motivos, quanta gente é «deixada à solta»? Mais uma vez, é patente
que se disputa num terreno fatalmente desconhecido – onde se adensa
o mistério da vida.
Falar de «homicídio» será uma posição preconceituosa. De novo, o
perigo vem «dos outros», que podem ter «interesses homicidas».
3ª questão: É LÍCITO PROVOCAR A MORTE PARA ELIMINAR O SOFRIMENTO?
Outra pergunta sem sentido. Lembra a história do missionário que
matava os recém-baptizados para lhes garantir o céu…
Trabalhar arduamente «provoca a morte»… A INTENÇÃO é crucial – mas
quem a pode avaliar? Por isso, cabe-nos aprofundar a complexidade
destas situações, sem cair na tentação de mandamentos e muito menos
de leis sujeitas a jogos políticos. Segundo o folheto, «o Estado
afirma que a vida de pessoas doentes e em sofrimento já não merece
protecção, não é digna de ser vivida». Será assim? Já aconteceu na
história recente; e a nível local, ainda acontecerá. Ora é
«localmente» que se pode agir com humanidade. Aliás, não é o
tratamento médico que mais importa – mas o carinho que revela um
amor incondicional perante quem sofre e está a morrer. Sacerdotes e
Instituições religiosas «educam» os seus membros para serem «úteis»
e reconhecidos como «úteis» até ao fim da vida? E que sentido se dá
a «útil para a sociedade»? Quanto ao suicídio, será uma «fuga» à
dureza da vida, muito subjectiva e que não inclui necessariamente a
realidade da morte.
Ao contrário do folheto, cada pessoa DEVE SER ÚTIL ATÉ À MORTE.
Sentir-se útil, sentir-se reconhecida como útil… Porque é sinal da
dignidade da vida e leva toda a gente a reflectir sobre a coragem de
viver – geradora de verdadeira alegria e mesmo de prazer. Vale a
pena lembrar a inaciana «indiferença» por mais ou menos agrado.
Portanto não é correcto afirmar que a eutanásia «elimina a vida».
Mais correcto seria dizer: é a vida que elimina a vida… (afirmação
biologicamente aceitável, aliás).
4ª questão: A VIDA TEM APENAS UM VALOR INDIVIDUAL?
O «Personalismo», sistema filosófico inegavelmente promotor da
dignidade da pessoa, não escapa às limitações próprias do pensamento
humano. Abriu caminho a posições individualistas, pouco atentas ao
fenómeno da vida na sua globalidade. A vida é, para nós, a mais alta
forma de energia, que nos possibilita «dominar» progressivamente
toda a realidade, a partir da capacidade intelectual. A vida da
Humanidade vai surgindo na infinidade de manifestações ou surtos de
vida singulares. Se estes não enriquecem a «grande vida», são como
flores sem fruto. O nado-morto, o soldado desfeito ou o velho
«apagado», mesmo que pareçam ignorados, contribuem para a expansão e
aprofundamento do pensamento humano. Falar de Qualidade de vida a
nível individual não é lógico: os conceitos de «vida» e «qualidade»
requerem experiência partilhada (sem incluir igualdade); moralmente,
é uma farsa, se não há preocupação pela vida de todos. Nesta linha
de pensamento, porém, posso (e até devo) «dispor da minha vida» para
bem da Humanidade. Como pensamos que fez Jesus Cristo?
5ª questão: QUAIS AS NECESSIDADES DO DOENTE EM FIM DE VIDA?
Se temos a certeza que está em fim de vida, por que não cuidar
sobretudo da sua «eu-tanásia»? O «alívio do sofrimento físico e
psíquico» e o «apoio espiritual», tudo bem condimentado por
afectividade autêntica, só não são uma farsa se praticados ao longo
da vida, nos maus e bons momentos. Como diz o povo: «As flores
dão-se em vida e não só na morte».
6ª questão: QUAIS AS CONSEQUÊNCIAS DA LEGALIZAÇÃO DA EUTANÁSIA?
A confiança entre médico e doente não é abalada por haver ou não uma
«lei»: assenta, sim, no nível de formação espiritual de cada qual.
De acordo com o que se disse ao princípio: NÃO DEVE HAVER LEIS PARA
CASOS EXTREMOS (que até deixariam de ser «extremos»…). DEVE HAVER UM
ESFORÇO DE AUTO-EDUCAÇÃO. E para tal, ninguém pode ficar
indiferente. As instituições mais ligadas à educação e às
«humanidades» devem proporcionar debates honestos e cada vez mais
fundamentados na «verdade» que não é monopólio de ninguém. Por outro
lado: A EUTANÁSIA NÃO SE OPÕE À MEDICINA: é um «caso extremo» a que
nenhum médico pode ficar alheio. Mas É SOBRETUDO UMA SITUAÇÃO
PROFUNDAMENTE HUMANA, da qual todos nós devemos tomar consciência. O
problema é mais agudo justamente devido ao progresso da medicina,
das técnicas de bem-estar, e da consciência de solidariedade social.
As Igrejas cristãs, entre outras, são contra eutanásia e aborto, mas
não sabem acompanhar e ajudar, SEM PRECONCEITOS e COM VERDADEIRA
SOLIDARIEDADE E AMOR, o sofrimento dos que vivem a situação – e que
podem achar mais sensato evitar um altamente provável sofrimento –
para o próprio e para os outros.
Aliás é toda a Humanidade que devia chorar por tantas perdas e
sofrimento – lutando para que nada disso seja necessário. O que
implica uma realista organização social (e planeamento familiar) –
sem leis mas com bom senso e boa informação dos factores em jogo.
7ª questão: A LEGALIZAÇÃO DA EUTANÁSIA É UM PROGRESSO
CIVILIZACIONAL?
Por tudo o que aqui foi dito, CLARO QUE NÃO. Apelar muito a leis é
sintoma de não querer ter o trabalho de pensar. Nomeadamente, não
ter medo de reflectir sobre os valores que mais nos questionam.
NENHUM VALOR É ETERNO OU INATACÁVEL. Valores não são dogmas:
precisam de ser objecto de honesta e contínua reflexão, pois quer o
«assunto valorizado» quer «a expressão das valorizações» se vão
alterando ao longo do tempo, e por vezes devido a tragédias. Se
amamos a vida da Humanidade, temos que nos saber «educar».
Aborto, suicídio, eutanásia… têm que ser abordados com humanidade e
não com legalidade.
Aveiro, 29-10-2019 |