Pelos 13 anos, frequentava a «Escola Apostólica» da
Província Portuguesa da Companhia de Jesus. E a minha avó materna,
confiante no meu futuro sagrado, escreveu-me um dia: «Não te
esqueças de pedir a Deus que me dê uma boa morte». Levei o pedido a
sério e logo respondi: «…e não me esquecerei de rezar para que tenha
uma boa morte». A reacção da família imediata quase dava cabo da
minha incipiente «vida sagrada». Aprendi que todos queremos «morrer
bem» mas que ninguém quer morrer. Mas como seria possível ter boa
morte se não morrermos?
Muitos anos mais tarde, descobri que «boa-morte» é a
tradução literal e exacta de «eu-tanásia». E mais: existe uma «Santa
Atanásia» (= imortal) mas não conheço nenhuma «Santa Eutanásia» e
muito menos «Santa Tanásia» (ou «Santa Morte», que pelos vistos já
não será tão bom…). Reza a tradição, isso sim, que a «boa morte» de
Nossa Senhora foi notável: rodeada pelos devotos, pelos Apóstolos e
pelos Anjos, que a levam para o céu sob a autoridade do seu filho
Jesus (lendas antigas e pinturas clássicas). É a célebre, linda e
significativamente chamada «Dormição» de Nossa Senhora. Nada disto,
aliás, está em questão: só pode haver registos do que se passa
«neste mundo». A eutanásia, portanto, só pode ser discutida como
coisa que é deste mundo – com vasto leque de sentimentos positivos e
negativos, implicações de ordem económico-política, religiosas…– e
tudo isto formando um denso «nevoeiro ético».
Em muitos trabalhos sobre este tema, reparo que até
autores atentos ao «nevoeiro» acabam por lamentar a ausência de
legislação: assim se poria termo a indecisões e disputas bem duras,
além de promover um ambiente de pacificação interior e de genuíno
apoio médico-social e familiar.
Porém, até a este nível «cientificamente
independente», vem à tona a utopia da acção perfeita. Nada mais
contra a característica essencial do ser humano: desejo permanente
de segurança = condição permanente de insegurança. Não são apenas as
crianças que fecham os olhos para se entregarem às mãos seguras da
pessoa em quem mais confiam.
Então, por que não havemos de confiar nas mãos do
médico? Ou no amor da «família» e amigos? Ou na «sabedoria» de
sacerdotes e «Doutores» acreditados?
Na verdade, todos estes são atacados se algo «parece»
correr mal. A acusação é usada até para tirar proveito financeiro.
Muito pior ainda: Há razões muito graves para não confiar: devido à
triste e longa lista de médicos, sacerdotes, parentes chegados…
incompetentes, falsos e potenciais homicidas.
Volto a repetir o que já escrevi várias vezes: um
«caso extremo» é aquele que está para além da normalidade, isto é,
fora da zona razoavelmente conhecida para se agir em segurança.
Morte, aborto e o próprio divórcio são frequentemente casos
extremos. É ridículo pacificar a nossa mente e justificar as acções
porque seguimos «uma lei». Como aqueles crentes que se «abraçam à
fé», a alguém ou a um objecto religioso, como se assim agarradinhos
fossem de boleia para o céu.
Dá-se boa morte quando todos nós, a morrer ou mais
atrás na fila, pomos em primeiro lugar as relações humanas
fundamentadas no querer-bem; quando «gerimos a morte» com a mesma
«economia caseira» de cada dia. Quem está a morrer deve sentir-se
amado, vendo como a sua vida é valorizada até ao fim e muito para
além «deste fim»: como elo insubstituível, com seus defeitos e
qualidades, na incomensurável corrente da vida – fruto do passado e
semente do futuro. Se esta visão for «normal» na vida relacional,
estaremos mais confortados e seguros na hora difícil. E exercitamos
o pensamento em vez de preguiçosamente o substituir por regras que
tratam o ser humano como «uma coisa». «A vida é uma luta», diziam os
antigos (e hoje não?). Lutamos por dinheiro e poder – e não haveria
mal nenhum se lutássemos para que o poder e riqueza estejam ao
serviço de maior confiança e justiça. Assim criaremos condições para
afinar o sentido ético e favorecer o progresso moral e científico.
Precisamos de nos sentir amados e respeitados, em qualquer idade e
situação. A eutanásia prepara-se ao longo da vida: aprendemos a «com-morrer»
no nosso modo de viver e «com-viver».
Aveiro, 05-02-2020 |