O «7 MARGENS» publicou, já lá vão algumas semanas,
uma notícia com declarações do Cardeal Robert Sarah, que considerava
demasiado abstracto e já cansativo o discurso de FRANCISCO sobre
estes temas.
Várias pessoas, entre muitos apoiantes do Papa, têm
levantado a mesma questão. E porque Francisco é exemplo de quem
procura sem medo a verdade e tem o dom do diálogo estruturante,
devem ser os amigos e apoiantes a escutá-lo criticamente.
Como bem-aventurança, a misericórdia, ou compaixão,
fica ao nível de «ilimitada aventura». Não se pode «levar à letra»
porque não tem «letra»: é um desafio a nunca parar na procura de
soluções orientadas e instigadas por uma fasquia cada vez mais alta.
É olhar sempre para além do horizonte, como é próprio das
Bem-aventuranças.
Porém, ter compaixão não é uma atitude etérea ou
platónica. Não se pode ficar fascinado com a ideia de «abrir os
braços» a quantos fogem para ao pé de nós: é preciso estudar sem
preconceitos o que se passa e preparar um incansável esforço para
descobrir soluções. Nenhuma delas pode ser perfeita – mas todas elas
se podem aperfeiçoar, o que inclui reconhecer erros e corrigir o que
é possível. Está em causa a humildade própria de quem reconhece
«apenas ter feito o que devia fazer»; e também a «pobreza» de quem
não se apega ao que vai fazendo – justamente porque vive o
permanente apelo do Bem.
Nunca é demais meditar nesse extraordinário poder dos
seres humanos: sentirem-se em comunhão com o sofrimento dos outros,
de modo activo, procurando soluções.
Parece, contudo, haver receio de aprofundar alguns
aspectos: há cada vez mais emigrantes, vítimas de guerra, terrorismo
e ditadura feroz, a dizer claramente que desejariam não ter que
fugir do seu país e que tudo farão por voltar. De certeza que há
muita falta de informação «lá e cá». Por outro lado, não é patente
(nem «transparente») o esforço, quer da diplomacia política quer das
organizações de «acolhimento», para se enfrentar adequadamente a
situação. Não se leva a sério o projecto da «ética global» (Hans
Küng): os políticos continuam demasiado presos a interesses
«egoístas» e «a gente» não tem tempo para discutir e pensar no «por
quê» e «para quê» de ajudas pontuais.
Investigando os termos «compaixão» e «misericórdia»,
encontramos um extenso campo de conotações: justiça, ajuda concreta,
perdão, reconciliação, reforço da união da comunidade de referência,
disposição assumida para procurar acolher o outro (seja qual for a
sua proveniência)…
Convenhamos que não é fácil desenvolver o hábito de
relações humanas em que justiça e carinho não se atrapalhem
mutuamente. A «ética global», na medida em que se baseia num
consenso moral explícito, implica medidas concretas comummente
aceites para «combater» as causas dos problemas. «Abrir os braços»,
sem poder ajudar o outro a construir um «modus vivendi» e a
combater as causas do mal, é enganar-se com boas intenções. Por
outro lado, é preciso partilhar a consciência de que o trajecto da
Humanidade é sinuoso: a percepção dos valores em geral forma uma
espiral irregular e ocasionalmente regressiva; e as «regras» de
convivência, como qualquer tipo de «constituição», não são absolutas
nem eternas. Nem o valor eleito como principal resiste às tendências
destrutivas de fanáticos.
Verificamos frequentemente que é mais fácil ter
compaixão pelas vítimas longínquas de uma tragédia do que pelo
sofrimento a nosso lado. É por isso que a «misericórdia» ou
«compaixão» precisam de ser exercitadas com toda a sinceridade nas
relações humanas do dia-a-dia. Felizmente, a amizade, simpatia e
ajuda são comportamentos «contagiosos», cujo hábito favorece a
«grande política» e «ética global».
Francisco desafia-nos a «superar os nossos medos».
Sabe que é natural ter medo do desconhecido (e o outro é sempre um
mistério…) e sabemos que «sem medo» arriscamos tragédias.
Justamente, ele chama a atenção para «pensar» (= «pesar») os vários
cenários de soluções possíveis.
Não podemos esquecer a «prudência da pomba». Uma
intervenção oportuna implica medir as nossas forças espirituais,
físicas, económicas e… políticas! Para tanto, Francisco apela à
sabedoria de ler os sinais dos tempos e particularmente à dimensão
espiritual da maneira como nos vemos e vemos a Deus nos outros.
A sabedoria dos tempos é muito clara: «se eu quero
ajudar quem está em perigo, tenho que assegurar primeiro que estou
bem firme». Doutro modo, agimos irresponsavelmente. A História
ensina que somos naturalmente migrantes. Mas cada vaga migratória
tem um espaço-tempo demasiado peculiar para legitimar que se façam
comparações à primeira vista.
O fenómeno «migração» engloba os problemas tanto de
quem «pede» como de quem «dá». A nenhum país interessa pôr em perigo
o equilíbrio social das várias comunidades humanas.
Os Estados que alinhem numa «ética global» têm que
saber dizer claramente o que é humano ou anti-humano, discernir as
causas negativas e como agir contra elas. Sem esquecer que não é
fácil enfrentar «os poderosos».
Aveiro, 07-06-2019 |