…E sempre nas vésperas do Ano Novo. Para o começarmos com a
esperança e carinho próprio de quem embala o seu filho querido. O
nosso filho querido e amoroso, mesmo que esteja rabugento. Como
todos os filhos: não são nossos mas filhos e filhas da Vida (leia-se
o poema de Khalil Gibran sobre As Crianças, na sua obra O Profeta).
Não será também que nós é que nascemos cada ano como pais e mães de
todos os filhos? Como responsáveis do seu crescimento, felicidade,
desenvolvimento emocional, intelectual e espiritual… sem esquecer a
capacidade de se dedicarem a profissões que os realizem com o maior
prazer e que por sua vez contribuam para a realização de todos os
membros da sociedade. Seja a de carpinteiro – como poderá ter sido a
do menino agora em questão. Não admira que, com tanto serrar,
martelar e pintar, tenha aprendido a distinguir a boa da má madeira
e também a saber aproveitar as rachas, as arestas e outras formas da
criatividade da natureza. Tal e qual como mais tarde valorizou as
formas únicas e criativas de cada ser humano.
Lá pela última década do século passado, celebrei o Natal com um
casal amigo. A filha deles, com a aparência de uns 8 anos, ao
admirar o presépio e escutar a melhorada versão desse acontecimento
de todos os anos, não se conteve e exclamou: «Mas este miúdo nunca
mais acaba de nascer?»
Não é fácil dar a entender. Mas por que é que dizemos que nascemos a
cada dia e morremos a cada noite, para voltar a nascer? Ou que
morremos com o Ano Velho e nascemos com o Ano Novo?
O menino em questão foi sempre rodeado de mistério. As próprias
lendas sobre a sua infância (algumas transparecem nos evangelhos de
Mateus e Lucas e noutros Livros sagrados como Corão) embalaram a
imaginação de grande parte da Humanidade e estão profundamente
presentes na arte e organização cultural da civilização europeia. O
culto de um menino, símbolo da fragilidade e pequenez que se
transforma em verdadeira autoridade e símbolo da Vida plena
encontra-se em muitos rituais e «histórias sagradas» de várias
religiões, como em muitas festas populares. Aliás, não é este o
sentido do acolhimento festivo de um novo bebé em cada família?
A Humanidade é produto de todos os meninos que puderam resistir ao
egoísmo e poder de destruição dos que deixaram de «ser meninos». É
produto do mistério da força da Vida.
E procurando ser honestos, não devíamos dizer que cada ser humano é
um mistério? E que toda a existência, toda a «imensidão» (= não
mensurável, incompreensível) do Universo é um mistério?
Este menino não se cansa de nascer porque em todas as peripécias da
vida se foi unindo cada vez mais profundamente ao mistério de Deus.
Porém, Deus não é um mistério: Deus é o mistério. O Homem é
um mistério, o Universo um mistério… porque «se movem e existem»
dentro de o mistério. E o menino de hoje aprendeu a saborear
em tudo esse único e total mistério: na dor e prazer, tristeza e
alegria, vida e morte… e sobretudo na inquietante e inextrincável
questão do Bem e do Malsão mistérios que nos alertam para o
mistério: de que não parece possível falar adequadamente, mas do
qual nada pode ser mais real. Não compreendemos «como é», embora
saibamos que «é».
Como diz Albert Nolan em Jesus hoje, «em certo sentido, Deus
é o carácter misterioso de todas coisas»: «eu não estou fora
do mistério de todas as coisas» e devo-me incluir «no mistério ao
qual chamamos Deus». Jesus de Nazaré ficou na História porque
encarnou espantosamente a relação e união do ser humano com Deus.
Podemos dizer que é este o núcleo dos vários sistemas religiosos.
O menino Jesus preparou-se para ensinar que Deus (um nome que damos
ao mistério) não era o grande soberano todo-poderoso,
longínquo, punitivo e exigindo obediência cega. Nem deu a ninguém
dores de cabeça para se pensarem coisas muito altas e recônditas.
Preferiu, sim, contar pequeninas histórias baseadas na vida de todos
os dias, que acordavam toda a gente para saber curar o que mais
amargava o coração. E que até podíamos representar a Deus como a
perfeição total da pessoa humana: como Pai tão perfeito que possui
todo o amor de Mãe. Ensinou-nos a cultivar a Força e Coragem para
discernir e seguir o Bem.
E é por isso que todos os anos celebramos «o menino que não se cansa
de nascer» – para que nunca nos cansemos de crescer.
19 de Dezembro de 2022 |