A aparência engana: não passa de intrigante e anacrónica «técnica de
formação» do «homem espiritual», de modo a alcançar o mais alto
nível possível de «jesuíta íntegro». Por volta de 1960, ainda era
prática corrente na casa de formação dos jesuítas portugueses (entre
os 17 e 21 anos de idade, na generalidade).
Quem leu o meu anterior artigo (Boas vindas e o «dom das Línguas»)
podia transformá-lo num exemplo dessa técnica:
Sairia com o meu companheiro (neste caso sacerdote) e poderia falar
assim: Nas homilias, vê lá se escolhes melhor as palavras; e às
vezes descuidas a pronúncia; e és ou não uma pessoa autónoma? Por
que não nos pões a pensar a sério sobre «pecados modernos» tão
anti-sociais e desumanos? E de ecologia?...E ele: Eh pá! Vê-se mesmo
que não imaginas o que é ser padre! (Cá por dentro discordaria um
bocadinho); nem tens ideias bem feitas sobre questões importantes das
Escrituras e Igreja!... Eu atiraria que os padres andam demasiado
perto do céu ou perdidos em burocracias; sem coragem para discutir o
que mais nos aflige; acabaria por trazer à baila o casamento dos
padres e mais uma achega: por que não chamas para o teu lado, na
missa, um ou mais casais, novos ou velhos, ou mesmo só noivos (mas
variando!) – como representantes de todos nós, que já não cabemos à
volta da mesa da última ceia?
Ele entraria a «contextualizar» os «defeitos», discutiria estratégias
de melhoramento, etc., sem esquecer as minhas manias mais ou menos
inconvenientes, quando não claramente contra os mandamentos. Até
acabarmos por falar das maravilhas da paisagem, fosse ela o mar bravo
ou a imensa coreografia das montanhas e vales…
Mas se fosse um companheiro da minha laia: Ó Manel, francamente, tu
andas a chatear meio mundo com as tuas peneiras, falta de senso,
agressividade… (prefiro ficar por aqui).
Sim, também haveria lugar para mordidelas, daquelas que acordam…
Podíamos ficar mais amigos ou nem por isso. Verdade seja dita: lá no
fundo, não rimávamos com essa tradicional «correcção fraterna».A
intenção seria boa, mas guardava um cheirinho a inquisição e
constrangimento. Caberia à autonomia de cada qual tirar partido
desta conversa tão programada: ganhávamos ao menos o saber confrontar
e confrontar-se. E é reconfortante ver que as asneiras não só têm
emenda como ainda servem para melhorar o jeito de viver.
Uma «técnica» falhada, mas com o espírito da confissão e
reconciliação. Sabemos, por experiência própria ou alheia (e em
livros, filmes…), que as pessoas precisam de desabafar; e de
mostrar, particularmente nos graves cenários de morte eminente, o
arrependimento pelo mal feito; de jurar o amor pelos entes mais
queridos; de pedir uma palavra ou gesto de aproximação, de como
estamos unidos por angústias e esperanças.
Do ponto de vista antropológico, é uma necessidade comum: é difícil
aguentar sozinho o peso da consciência e do maior sofrimento.
Precisamos de nos sentir companheiros. Quem goste de ler a Bíblia
encontrará muitos exemplos bons e maus: Job não teve sorte com os
companheiros; já aos «companheiros de Emaús» (Lc. 24,13-35) saiu a
sorte grande com o inesperado caminhante que se lhes juntou.
«Confessemos os nossos pecados» – não é o que diz o sacerdote ao
princípio da missa? Não será um convite a tomar consciência de como
haveria mais justiça e mais confiança se tentássemos agir como bons
«companheiros de defeitos»? Dêmos o nosso ombro para nos tornarmos
«companheiros de progresso».
Enfim, espero continuar a arranjar razões para dizer que «ainda vou
à missa». Faz bem pensar que toda ela, para todos nós, pode ser
verdadeira festa de reconciliação.
Aveiro, 04-01-2020 |