1º Domingo da Quaresma (ano C)
1ª leitura:
Livro do
Deuteronómio, 26, 4-10
2ª leitura:
Carta
aos Romanos, 10, 8-13
Evangelho:
S. Lucas, 4, 1-13
Ao longo dos tempos, o deserto tem sido olhado como o lugar onde
viver é mais duro ou mesmo impossível e onde o perigo extremo
espreita os viajantes. Mas não faltam turistas, atraídos quer pelo
insólito cenário quer pelo prazer de deixar para trás o frenesim e
cuidados do mundo a que estão habituados. Ou para viver aventuras
loucas. Também houve muita gente que aí se retirou ou até aí passou
a vida: para melhor avaliar a autenticidade da força interior ou
dispor da clareza e isenção necessárias para medir os prós e contras
de planos e empreendimentos. Ou «simplesmente» para namorar…
Todo o namoro é uma operação de reconhecimento… É fundamental
avaliar as vantagens e condições adversas para o empreendimento em
vista. É bom que a paixão nos faça sair do ram-ram e até nos pareça
dar asas para um «desporto radical»… mas coração quente requer
cabeça fria! Num ambiente em que não nos sintamos na mira do olhar e
sobretudo sob o fogo do julgamento dos outros. Onde nos podemos
entregar a ponderar os desejos, guiados apenas pela honesta e também
pacificadora pergunta; o que é que vale a pena fazer para me sentir
realizado na vida?
Quando nos dispomos a pensar, sem ter que dar contas senão à nossa
livre honestidade, entramos na imensidão libertadora do deserto.
Onde não faltará aridez mas onde os nossos passos se deixam dirigir
e se deixam ouvir sem empecilhos estranhos. Onde a escolha e o amor
são sinceros, porque vemos as coisas como elas são.
Na história do povo judaico, o deserto foi uma experiência bem
radical, no sentido físico e sobretudo espiritual: simboliza a
construção da identidade de um povo, a descoberta e discussão dos
ideais que valem mesmo a pena e de como é possível e vantajoso
aceitar uma relação com Deus – essa «realidade» estranhíssima sempre
presente na vida desse povo. Como entender Deus «misturado» com o
nosso dia-a-dia? Levar esta pergunta a sério exige uma relação
adulta – e um sério «namoro».
O profeta Oseias (2,15-18) põe Deus a falar assim: «Hei-de
castigá-la (à «nação eleita») por correr atrás dos amantes e me
esquecer. É por isso que a vou seduzir, levando-a para o deserto e
falando-lhe ao coração. E ela se encantará comigo como nos tempos da
juventude». (Sejamos sinceros: Deus namorado não se deve parecer
muito com um príncipe encantado…).
O livro do Deuteronómio (1ª leitura) estabelece dias de festa para a
«nação eleita» lembrar a fidelidade do Deus libertador e fortificar
a identidade histórica e cultural. Conta as «experiências radicais»
dessa nação, «namorada» por Deus durante «quarenta anos» de deserto,
cheios de promessas, desquites, ameaças e perdões. Uma lição «a
namorada de Deus» terá aprendido: há sucesso quando se sabe para
onde caminhamos, por muitos trambolhões que a gente dê.
O desporto radical inclui «cambalhotas mortais» – e elas matam
mesmo, se não nos preparamos. Só assim é que também podemos alterar
o projecto inicial ou adoptar estratégia diferente sem incorrer em
grave risco. Jesus Cristo mostrou bem a importância do tempo de
«namoro». As célebres «tentações no deserto» simbolizam a
consideração de vários planos de vida possíveis. Enfrentou o
conflito entre os critérios da maior realização pessoal harmonizada
com o ideal de justiça e os critérios do poder pelo poder, da
vaidade, do prazer egoísta e do comodismo (a comodidade é um bem mas
o comodismo é atitude infantil).
Até precisamos de «namorar» os nossos pensamentos e sentimentos.
Facilmente nos deixamos enganar por nós próprios – para não falar da
ingenuidade com que nos deixamos levar pelas ideias lindas de
líderes políticos ou religiosos… «Autoridade» vem de «aumentar» a
capacidade de crescimento: e «crescimento» é «criar» algo de novo,
«concretizar» um projecto saudável de pessoa.
No deserto, longe das luzes que ofuscam, é que o namoro pode ser bem
avaliado. Aí aprendemos a orientar as energias do modo mais eficaz.
Aconteceu o mesmo com Jesus Cristo: há todo o mundo à espera dos
bons resultados de um dia «bem passado» a namorar… |