LOUVADO SEJA NOSSO SENHOR...

Conto alentejano do DR. CRUCHO DIAS

Acabara aquela tarde de Dezembro a apanha da «zétona» nas courelas da Cordêra, um louvar a Deus de farturinha, a tapar mingas e faltas de dois anos a fio de colheitas escassas e, ainda por riba, de azeitona gafadinha de todo.

Agora, graças ao Senhor, sãzinha e graúda que nem ameixa dê Santa Lúzia. Boa para a água, rica para azeite fino.

Certeza de alguidares cheios da retalhada, a comer já da do «alêjo», outra colhiada para o cedo. Da cheia, sem golpes de canivete ao serão, que o dia é pequeno para a lida, encher talhas para o ano adiante, a acompanhar pão nosso de cada dia. Talhas e potes cheiinhos do oiro liquifeito feito do azeite novo, para espevitar a luz mortiça da
candeia sem murrão, tempero cabonde para todo o ano de migas e açôrdas, salada de feijão preto, sopas e gaspachos nos dias quentes de Verão, a horas de merendar, e alguns alqueires para a venda.

Copa nova para o Zé, dezassete anos espigadotes, buço a apontar, a frequentar já os balhos no Largo da Venda do Manel Padêro, ou na «Casa do Balho», maI os primeiros arrepios anunciavam a chegada do Inverno, depois que as cegonhas e andorinhas debandaram em revoada e só os piscos, de roquete vermelho, teimavam em cantar nos silvados, as lavandiscas, salta aqui, foge acolá, sempre nervosas e desconfiadas,
a caminhar atrás dos sulcos que os arados abriam na terra para as novas sementeiras.

E, nas vozes do povo, a que ti Maria Luciana e seu Antónho fingiam não dar ouvidos, já de namoro pegado com a Luísa do Tem-te-Bem, alcunha que o pai, o Albino, trouxera em recordação do tempo das fileiras no 3 de Caçadores em Elvas.

A fumar sua cigarrada, dos de cu aberto, aos domingos, a ouvir contos e histórias da Carochinha e outros de sabor picante, com muito sal e pimenta, a jornaleiros e malteses, e a molhar a palavra com outros de sua idade e igualha «à do» Manuel Padêro, aos sábados, ou em noite de balho, numa fugida, para refrescar a gorja e os bofes, enquanto o da concertina ensaia acordes de nova modinha.

À do Albino, não. Podia o pai desconfiar do rente à filha e arranjar para ambos algum pé de vento...

Ná, que ele já ganhava jorna de dezoito mal-réis ao dia, e fazia serviço como muitos homens se não podiam gabar de tanto e tão bem executado trabalho, dizia ti Tonho, o pai, e repetia enlevada a mãe, a ti Maria Luciana.

A saltar desenvolto, «o puladinho», a pular nem cabrito novo e a voltear que nem garraio, capeado na lide, a «chotice», regalo de velhos e velhas, acocorados em volta do terreiro do baile, a recordarem a sua mocidade distante quando, como o Zé Possante e Luísa dançavam também as modas velhas da Ervideira...

Eram-lhe familiares os «Corridinhos do Algarve» e, nos tangos, chegadinhos da vila, ouvidos na Rádio ou nos Cinemas da Feira da Ponte, e que os do harmónio ou da concertina logo traziam para a aldeia, a apagar modas velhas, já lhe dava um «gêto» sem fazer má figura

Capote para seu Antónho e botas novas, que de um e de outras bem preciso andava...

Para ela, para ti Maria Luciana, a deitar estas contas – boas contas deita preto para furadas lhe saírem – enquanto largava a macadama para enfiar ao caminho velho e atalhos e chegar mais prestes à Ervideira a tempo de fazer a ceia para a «famila», avental e lenço novo para a cabeça, chegariam e bondavam:

– Sim, que em classe de pobre já era comprar muita coisa: Copa nova para o Zé, capote e botas para seu Antónho, avental e lenço de cabeça para ela...

Já a estrelinha da tarde queimava o risco que separava a fita larga, vermeIho-alaranjada do lusco-fusco, a rasar a linha do horizonte a bandas do Mar, do anil do entardecer, na imponente / 322 / largueza hemicircular do horizonte, em toda a grandiosidade e beleza dos poentes alentejanos.

Ao nascer do Sol caminhava a Noite a passos lentos, macios, com sapatinhos de veludo e penas. No regaço a foicinha de prata da Lua-Nova, bico ao alto a segurar a chuva, e que, ao acabar das «acêfas», as ceifeiras lhe deixaram por prenda, em paga da frescura que a noite lhes dera, como bênção do Céu, todas as tardes da ardente canícula do Estio nas aceifas.

De enfiada a «Barba Torta» voava alto um bando de pombos bravos.

Um melro assustadiço, escondia-se num silvado, a cear bago de azeitona que levava no bico.

– Copa nova, camisa, ceroula e, se pudesse ser, uns sapatos para os domingos, pró seu Zé.

Capote e botas pró mê Antónho, lenço da cabeça e avental para mim. Já é comprar muito em classe pobre...

...Eram contas do rosário de ti Maria Luciana, enquanto ia trepando, trepando sempre, encosta da Boa Vista arriba, para chegar a casa a tempo e horas de ter a ceia feita para seu homem, para o Zé e o rancho da azeitona.

– Rancho?! Ah! Ah! Ah! Deixa-me eu cá rir...

E tia Maria Luciana esqueceu por momentos as contas que vinha deitar:

– Copa nova para o Zé. Se puder ser... Uns sapatos novos, prós domingos...

– Ná que ele já trabalha que nem um homem e ganha bons, dezoito mal-réis por dia, para gargalhar de vontade, àlacre, sonora...

Rancho, era modo de dizer. Tudo gente de família.

A viúva do seu mano Zé Matias, que Dês le perdoe, a cachopada, os quatro filhos que lhe ficaram por acabar de criar, a irmã Jacinta e o marido, que os da casa, seu Tonho e seu Zé eram sempre certos...

Mas havia que fazer o comer para todos e ti Maria Luciana estugava o passo, adiantava-se, a caminho da Ervideira, enquanto nas courelas da Cordeira limpavam a última azeitona, a ensacavam, juntavam liteiros e panais da apanha.

– Boa colheita, sim senhor.

Desta vez era certo: copa nova para o seu Zé, camisa e ceroulas e os sapatos se pudesse ser. Ná que ele já era um homenzinho e ganhava boas jornas, a fazer ver a muitos homens.

Botas novas e capote novo para o seu Antónho, que bem preciso andava de umas e de outro. Lenço da cabeça e avental para ela, ti Luciana.

Botara as mesmas contas quando vira as searas tão prometedoras e que depois, o ano estragou...

– Três vezes nove vinte e sete, noves fora nada...

Agora, porém, eram certas. A prova lá estava nas trezentas fangas de azeitona / 323 / colhida, a dar funda como nunca se vira.

Já quase no cimo da encosta ouviu gemidos aflitivos no meio de umas carrasqueiras altas e fetos secos, a tiro de caçadeira do carril por onde caminhava. Parecia, salvo seja, gemidos de criança recém-nascida que mãe desalmada «práIi» deixasse ao abandono.

– Vêem-se tantas coisas por esse mundo de Cristo. Bem dizem que o Mundo tem sete cartas, o que é preciso é entendê-las...

Não era, nunca foi medrosa tia Luciana.

A estrada ficava longe, lá em baixo, aos caracóis, volta, desenvolta, torna logo a voltar, para galgar sem custo as alturas da Boa-Vista.

Cabeços além, nem vivalma se avistava.

De longe, diluída na distância, toadilha de um rancho de azeitoneiras em que mais se adivinhavam do que se ouvem as quadras:

– Verde foi meu nascimento,
e de luto me vesti.
Para dar luz ao Mundo,
mil tormentos padeci...

que ti Luciana cantara também em sua mocidade, a distanciar-se cada vez mais.

Apenas os gemidos, ora mais fortes, ora mais ténues e frouxos, a erguerem-se entre as franças da carrasqueira e folhas secas dos fetos, punham no silêncio da tarde uma nota aflitiva, dolorosa, como de vida a extinguir-se, como náufrago exausto de lutar com as ondas, e ver terra, sem lhe poder chegar.

Varrera da mente contas que vinha a deitar à vida, copa para o Zé, o lenço e o avental para ela tia Luciana, capote para seu homem. Calara seu gargalhar contente que nem cântico de cotovia madrugadora, para somente pensar agora o que seria, não seria, causa daqueles gemidos tristes, aflitivos e, de «sufégo». lhe puseram nó apertado nos gargomilos e no coração...

Deixou por momentos o carril e abeirou-se da carrasqueira. Afastou pernadas e ramos.

E viu então, contava ela depois, enquanto na ponta do espeto virava mais uma chouriça a assar, do porco que criara e matara, para a família, assentada à volta da lareira crepitante, que lhes iluminava os rostos morenos, a festejar a adiafa, Uma loba a parir, um lobinho já fora a sugar-lhe a têta túrgida, outro a aparecer na serventia de baixo da natureza, que as lobas, como as mulheres têm, para botar cá para fora os filhos.

Nos olhos da loba uma expressão de dor e ternura.

Tinha encimado as luas e ali mesmo acamou nas folhas secas dos fetos, a coberto de vistas estranhas pelos ramos e folhas da carrasqueira, para ser mãe...

Que os bichos, «comá» gente, também tem as suas vergonhas, louvado seja Nosso Senhor!

E assim Deus me salve, como isto é verdade, rematou ti Maria Luciana, enquanto, na ponta do espêto, virava, pela última vez a chouriça a assar, do porco que criara e matara...

 

 

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