REGRESSO FELIZ
Conto de AMÉRICO PAIVA
(1.º prémio nos Grandes Jogos Florais
Alentejanos)
Para Beja: ao ARNALDO ROCHA
Quase à tabela, o que só de longe em longe adregava suceder, o comboio
parou na estação,
depois do peito alto e farrusco
da máquina ter empurrado para a gare uma lufada de vento tépido. Três
caras mazombas, de sono, receberam o recoveiro: a do factor que fazia
de chefe, a do carregador que fingia de porteiro e a do rapaz que andava
de estafeta do correio. Um lampião de vidro sujo e crista de chama
mortiça, em despique ridículo com a luz do luar, colava-se à frente da
caseta, paralelo ao relógio certo e grado. Só um passageiro desceu. Um
homem. Na mão trazia uma pequena mala de fibra. No corpo um sobretudo
velho, de gola sebenta e levantada. Andou para a porta de saída,
entregou o bilhete ao porteiro faz-tudo e seguiu estrada abaixo, sem
dizer palavra, sem olhar sequer para isto ou para aquilo. A trancos do
recém-chegado abalou o paquete dos correios. Levavam ambos o mesmo
destino, pelos vistos. Mais uns passos batidos no saibro delator do
caminho e ei-los lado a lado. O homem parou. O
gaiato parou, também:
– Dói-lhe alguma coisa, a vomecê?
– Sim, o coração...
– Está doente?
– Estou, doente de saudades...
– Vai para a
aldeia, vomecê?
– Vou para a aldeia.
– Dê-me cá a mala!
Desandaram estrada por diante. O homem meteu as mãos nas algibeiras do sobretudo, cravou
mais a cabeça entre os ombros e atirou-se para o seu rumo. Como que
falando com os seus botões, de dentro para dentro, parecia rever-se na
graça absorvente da paisagem. Entregava-se-lhe. Esqueceu-se logo de
que ia acompanhado. Queria gozar o ambiente, sem a ajuda de ninguém.
Primeiro, saciar-se do que via. Saber sem perguntar. Recolher notícias
novas e verdadeiras. Não perdia um pormenor. Mais uma ou menos uma
parede de tapada; mais um ou menos um pelotão de árvores; mais um ou
menos um casebre rústico. E nem um comentário de ouvir-se. Não podia
gastar tempo a falar do que
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via. Ovelha que berra, bocado que perde... De vez em quando, porém,
prendia o passo. Era tudo conhecido, com efeito, mais ou menos, mas
os dez anos de ausência tornaram-lhe o conjunto um tanto diverso,
pelo volume, pela expressão, pela novidade progressiva do panorama. E que diferente dos panoramas estrangeiros que vira e em que tivera de viver! Isto, sim, isto
era terra de gente. Trabalha-se mais e ganha-se menos, mas trabalha-se no
que é nosso e sempre se forra alguma coisa. Na América, por onde andara à
procura do ouro maldito
da tentação, para ver se lograva arrecadar algum, não muito, todavia o
suficiente para voltar a possuir na aldeia o que era seu e o azar lhe
roubara, mesmo a fossar sempre como um mouro. Qual história! Por mais
que trabalhasse, cada vez avezava menos. Nem dinheiro, nem saúde, nem
família! Tudo cada vez mais longe da sua humana ambição de tornar a ser
gente. Tratavam-no, ainda por cima, como a um camelo. À enxada, ao arado, ao sacho, à foice, a tudo, enfim, quanto se liga à faina penosa
da terra, fazia valer a sua classe de herói da gleba, diplomado pela
Faculdade da prática alentejana e, no entretanto e somente, em puro
desgaste próprio, nada mais. Desvanecia-se-lhe, assim, o sonho doce da
imposta tentativa de recuperação económica, pelo exílio. Fugia da terra
que mata. Da terra que não se vive nem sente, porque não é a nossa. Até
o calor de lá era outro. E se o sol de cá tisna! Tisna mas não derruba.
Não nos requeima até às entranhas, como o de lá. Não nos penetra no
sangue, ao jeito de febre ou veneno de víbora, como o de lá!...
– Vai a falar sozinho, vomecê?
– Vou a zurzir a outra terra...
A zurzir a outra terra?!...
– Sim, a trocá-la por esta.
Aquele sol!
– Vomecê não está bom da
cabeça. Tem sezões?
– Não. Tenho saudades...
Os galos despiqueiros dos
montes acompanhavam a marcha de ambos a notas esganiçadas de clarim.
Madrugada. A lua era ainda o solícito projector luminoso dos caminhos. E
caia como chuva cerrada de platina em pó sobre os dois amigos de
ocasião, que demandavam a aldeia a passo vagaroso. O homem, preso da
mesma tineta, seguia bisonho e atento, como que a reviver, finalmente,
em parcos minutos, uma década de existência degredada. Outra vez na
terra. E a sua terra estava de novo sob os seus pés. Conhecia e desejava
bem tudo isto. Este ar, este céu, estes campos, estas estradas, estas
árvores, estas paredes, sim, estas paredes de pedra solta, baixas, e cor
de pele de cobra velha, nunca se lhe haviam esquivado da memória, mesmo
a léguas e anos de distância.
Ao chegar ao muro da tapada Nova, como que tocado por unha de lacrau,
estremeceu. Depois, buscou o apoio seguro da parede. Sem tirar as mãos
dos bolsos, sem dizer palavra, sem levantar
os olhos do chão da tapada
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encostou a barriga ao muro curto e ficou-se pegado e vencido. Fora a
sua última cartada, aquilo... Que ror de contos e energias ali
enterrara! E tudo em vão, afinal, só por não ter raça de sorte. Nada
houve que não semeasse naquele chão famoso, dos melhores da freguesia,
desde o trigo seleccionado à soja de novidade, mas tudo, tudo lhe dera pela cara,
porque o tempo nunca ajudava. Quando era preciso chover, fazia sol.
Quando a seara pedia sol, chovia água a calhas. E isto um ano, outro
ano e outro ano, até que perdera tudo quanto tinha de seu:
dinheiro, crédito, coragem e terra. Foi então para o derradeiro
remédio: vender. Por uns tantos contos, entregou a fazenda. Pagou a
quem devia
e, a três anos de casado e pai de dois gaiatos, tratou dos papeis e
bateu a asa para a América, desafiado pela fama do ouro e pelo
quebra-cabeças
do resgate. Nada o detivera.
– Gosta da tapada, vomecê?
– Gasto...
– É nossa. Comprou-a a minha mãe, há coisa duns três anos.
– E dá dinheiro?
– Se dá! De tudo quanto se bota à terra, dá
dez vezes o dobro. É uma riqueza de folha.
– (Tumba do diabo!...)
– Que eu saiba, já teve quatro donos.
– E a todos dava prejuízo!...
– Se calhar. Cá à gente não.
Minha mãe comprou-a com os ganhos da chacina e do carvão. Era tempo de
guerra, ganhou-se
muito dinheiro. Tivemos sorte, quase sem dar um passo fora da aldeia.
É verdade que minha
mãe trabalhou a valer. Mas como fôssemos ajudados, é como o outro...
Desencostou-se do muro. Olhou ainda, a fundo,
o fundo da tapada que, na
verdade, lhe surgia outra, mais alegre, mais composta, mais rica, é o
caso. Que bácora de vida! Enquanto sua e regada pelo seu suor e pelo
seu sangue, porque se lhe entregara todo, carne e osso também, até a
pele, por fim, a ingrata da tapada nem ervas de jeito deitara. Tivera mesmo que se
render e abalar para
longe, para terra ainda pior doutros, para a América que, de cabo a
rabo, não fora melhor do que a tapada da sua
terreola. Vida dum ladrão! Vá lá a gente entender este fado corrido!...
Má ideia foi aquela, com efeito, de trocar a terra, por muito má e
ingrata que ela fosse, por outra que nem sequer conhecia e, afinal, lhe
foi madrasta. E quando a raposa anda aos grilos, mal da mãe e pior dos
filhos. Fogo por fogo, antes o de cá. Fazenda, mulher, gaiatos, amigos,
aldeia, tudo esquecido numa hora do catano, para ir à sorte para tão
longe, à cata de mais sonhos e
azares. Azar por azar, antes o
de cá. Ainda assim, cá, tinha amigos. Tinha trabalha menos puxado e
áspero, ao lado de amigos e camaradas e algum até, nas terras
conhecidas de camaradas e amigos. Ganharia pão de gente. Com a ajuda
da mulher, que era nova e gazil, as fegas não haviam de ser piores.
Teriam mesmo outro jeito. Mas a filha da púcara da negaça do ouro!...
Do ouro aos pontapés,
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a medir-se aos alqueires como as favas, como se aquilo fosse possível,
via agora... De ouro, sim, era toda a terra alentejana ao cabo de Maio,
ouro igualito ao das gargantilhas das moças airosas da aldeia, das moças
que às vezes não conhecem da sua terra mais do que uns tantos
quilómetros ao de redor, em marés de labuta. Tirada a prova real da
aventura bem custosa em que se metera, já não daria de conselho, nem ao
xarepe mais onzeneiro, que deixasse a terra
da sua terra alentejana, para emigrar, fosse lá por este mundo e outro
atestados de ouro.
Ouro!... Corja de trapaceiros! Nem o vira, a não ser, é claro, como o
de cá, nas montras dos comércios, a um ror de dinheiro cada grama.
Ouro!... Ouro, afinal, enxerga-se por cá, espalhado pelo chão, nos dias de tisnar
que os dias de verão alentejano dá, e ninguém o cobiça, fugindo dele mesmo, porque não faz bom cabelo. Ouro!... Ouro, é verdade, lhe
pedia, todos os dias, a galdéria com quem andara metido por necessidade
e não lhe deixava medrar um peso sequer no canto dum bolso do colete. Ao fim de
resto, tudo e todos a mesma fusca. Mulheres ou o inferno, aquilo era uma brasa de
lume, lá isso era, mas tão avezada estava já ao negócio de passar as
palhetas a qualquer tanso, que só sabia dizer uma palavra em muitas
línguas: ouro! ouro! ouro!... Bem dizem na aldeia, que a puta e o cão,
só olham à mão.
E a tapada, a família, a terra alentejana de que fugira embalado pelo
canto da sereia, subiam-lhe bastas vezes do coração à cabeça, a
fazer-lhe da saudade o pão duro e azedo de
cada dia, pão que mirra e mata, pão que tira e não põe sustento nenhum,
por mor da terra arredia e sempre dos outros...
A par, tal como enregaram a jornada logo à saída da estação, entraram na
aldeia, ainda com
a lua leve à cabeça e a brisa
fresca a depenicar-lhe nas orelhas. O homem repisava na deixa: «a matar
porcos... a vender carvão... uma mulher... quase sem pôr o pé fora da
terra...» e lutando, sem dúvida, com teimosia e sorte, fez-se daquilo
de que ele se desfizera... para continuar a não ter sorte, nem mesmo na
terra do ouro, na terra que dizem mil vezes
mais rica do que esta. Vida dum ladrão! De súpalo, estacou. Ergueu a
cabeça e olhou fixo em frente. Não interessava o
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restante casario. Os rodapés de
tinta agressiva, zarcão, roxo-rei,
oca, pó de sapato, um nunca
fechar de cores brigantes e velhas como o tempo, deitadas ao jeito de
painel ousado, não lhe feriam a vista, sequer. Já conhecido aquilo
tudo. Tudo aquilo pertencia às casas dos outros...
A que estava cara a cara, é que... Sabe-se lá! Hesitou. Como se tivesse enregado novo sonho,
levantou os olhos até ao beiral da casa. Foi com eles de extremo a
extremo da parede, levou-os à porta, à janela, ao interior do prédio,
passeando-os por lá, em penosa fegada de peito... E deixou de ver. Cego
por a água chorosa que lhe arrasava as meninas dos olhos, começou
a soluçar e a olhar apenas para dentro de si mesmo, como se as pupilas
em dilúvio lhe quisessem lavar o coração repeso...
– Ainda que mal procure, para onde vai vomecê?
– Nem eu sei...
– De que terra é vomecê?
– Sou de cá da aldeia.
– Tem casa cá na aldeia?
– Não sei. Há dez anos era
esta...
– Esta?! E donde vem?
– Venho... da América.
Tomado de pânico e alegria,
o rapaz aventou as malas, a do correio e a do companheiro, e, como louco
fulo, lançou-se à porta cerrada, batendo-a a punhos e apalancando-a com
os pés, ao mesmo tempo que bradava a fartos pulmões:
– Mãe!... Bia!... Vá arriba, carago, que está
aqui o nosso pai!
AMÉRICO PAIVA |