A Família Ramalheira
Excerto da novela Alentejana
de ISAURINDO QUEIMADO
2.º Prémio dos Grandes Jogos Florais Alentejanos, de 1948
...Os anos passaram, Alberto fez-se homem, completou seu curso com
distinção.
Grande júbilo nos corações amantíssimos de seus pais, ao receberem a
notícia da sua formatura com dezoito valores. E a notícia correu logo,
de boca em boca, numa satisfação geral, de quem vê concluído com
merecida recompensa, o desejo ardente duma família mil vezes santa,
caritativa e boa – a mãe dos pobres!
Por isso, num gesto espontâneo, numa infinda gratidão pelos benefícios
auferidos, aqueles
próceres do dever, desfilaram a caminho do monte da Ramalheira numa
romaria única, sincera – que parecia não ter fim.
É que, todos ou quase todos deviam favores àquela
família de tradições
humanitárias.
Era ali que a pobreza encontrava lenitivo para as suas dores e misérias. Ninguém batia
àquela porta, que não fosse contemplado.
A magnanimidade de seus corações diamantinos, assinalava-se todos os dias, por actos benemerentes, espontâneos, em
que não era fácil descortinar qual o mais caritativo: se o pai, se a
mãe, se os filhos – tão parecida era a bondade de suas almas.
Durante os últimos três anos até ao presente, em que uma seara farta
acabava de salvar da catástrofe toda aquela pobre gente, a família
Ramalheira espalhara benefícios às mãos cheias, sem olhar a quem.
E eles, os heróis ignorados,
lutando constantemente com a terra e a inclemência dos elementos,
jamais sentiam afrouxar dentro do seu peito a chama bendita do trabalho que redime
– que conduz à glorificação eterna!
Revolvendo-a em luta de titãs, como se um destino fatal os prendesse ao
solo intérmino, aqueles abencerragens consumiam seus corpos macerados,
na missão inglória de arrancar à terra, o que ela, tantas vezes,
abastardava.
Assim sucedia desde há três anos. E se não fora a boa seara deste quarto
ano, a desgraça seria aniquiladora.
A princípio o ano começara
mal; tão mal que eles – para quem a seara é o sangue e a própria vida –
perdidas as esperanças de mais um ano de lutas e sacrifícios, entregavam-se, já ao abandono, ao desespero.
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O grão deitado à terra, sem chuva, assim esteve tempo sem fim. Os
pássaros e as formigas, alapardaram-se com tão boa maquia, que só nas
herdades da Ramalheira, passaria dum quarteiro.
A semente rompeu mal e a seara estava rala.
De chuva, apenas alguns borrifos, que a terra sequiosa, logo tragava.
E o ano ia ser mau como os outros. A miséria, já de há muito, batia à
porta dos seareiros. Alguns, empenhados até à raiz dos cabelos, não
tinham onde cair mortos. Na arca não havia côdea que se comesse, nem
azeite, nem legumes, nem toucinho.
A conta, na mercearia, subia assustadoramente e já para alguns, a porta se fechara. Não era com palavras que o senhor Manuel
pagaria os géneros aos seus credores, pois a continuar naquela leva,
dava um estoiro que o levava o diabo. Os prometimentos de que uma boa
seara pagaria tudo, eram teorias vãs para o «sôr» Manuel da mercearia que
já não ia em cantigas. Desde há três anos seguidos, que ouvia a mesma
cantilena. Era assim mesmo nem pedidos, nem lágrimas, o viravam das
avessas.
E aquela boa gente, agrilhoados à última desilusão, palmilhavam léguas,
de monte em monte, de povoação em povoação, pedindo pão ou trabalho.
Quatro anos tinham passado, na luta homérica da terra! Gigantes do
labor, lavravam sempre, semeavam sempre, na eterna esperança de arrancar ao âmago da terra,
o precioso produto, que se transformaria em pão.
A Natureza porém, persistia em abandoná-los. Resultava estéril toda
aquela luta titânica, moirejada do amanhecer ao anoitecer em rajadas
sucessivas de heróico labutar.
As esposas, as mães e as filhas, torturadas por tão grande fatalidade
–
daquelas que conduzem ao desespero – imploravam ao Altíssimo, em preces
cheias de fé, a sua divina protecção.
Para outras, era negra calamidade, como se o mundo fosse acabar, à
mingua de alimentos.
Porém, o quarto ano, apesar
de tudo, ia ser abundante. A Terra-mãe, desentranhando-se em seiva
prodigiosa, de benesses, cumulou seus filhos.
A chuva, até certo ponto sedentária, começou de cair com regularidade,
com intermitências de sol vivificador, quando chegou o mês de Abril – de
águas
mil – granando toda a seara numa abundância de pasmar.
Depois, foram as ceifas.
A palha ficara curta, é certo,
mas afilhara muito e as espigas, cheias de bagos gordos e lourinhos –
que mais pareciam bagos de milho, que de trigo parecia não terem fim. Até
os porcos de alfeire tiveram farto agostadouro.
Então, uma alegria louca, espantosa, dominou naquelas almas
simples,
de ascetas sacrificados.
– Deus, conforme dá a chaga, dá a mesinha – diziam eles.
E os seus corpos esquálidos e famintos, já podiam encher a barriga de
pão, produzido e amassado com o suor do seu rosto. |