– Ouve-me Carlos! Meu querido Carlos!... Vá! Não sejas mau! Renuncia a alguns preconceitos que porventura ainda possas ter, quebra os grilhões da indiferença com que me estás amarfanhando aos poucos e abre-te comigo.

E dito isto Maria Helena debruçava-se toda, meigamente, ternamente, sobre os ombros másculos de Carlos do VaI de Rio, insuflando-lhe uma ternura toda enfeitiçada de meiguices.

Carlos do VaI de Rio conservava-se triste, meditabundo, alheio quase ao que o rodeava, olhando o chão em atitude cismática.

E Maria Helena, ante aquele indiferentismo, prosseguiu na insistência de tentar desvendar todo o mistério, daquela preocupação aterradora.

– Carlos! Meu querido Carlos! Julgo quase desnecessário, relembrar-te os sacrifícios e privações que sofri, voluntariamente, é certo, para que em paga pudesse receber um pouco do teu carinhoso afecto.

«Lembras-te, querido, quando eu abandonei a quietude daquela nossa aldeia alentejana, que perdida para lá ficou, a contemplar o ondulado das searas que lhe iam beijar os pés, embriagando-se toda com a solidão sombria dos montados? Lembras-te, eu sei que te lembras!...

E eu parti. Com que saudades! Deixava a terra, os meus pais, as minhas comadres e sobretudo os meus afilhaditos, que pela tarde me vinham pedir a bênção, revestidas duma inocência que encantava.

A ti, conheci-te depois. Foi na altura das férias grandes, quando eu ia já a caminho do 7.º ano e numa tarde de quinta feira. Eu vinha descendo a encosta do VaI de Rio, contornando uns atalhos mal «andamosos», nuns passos inseguros e temerosos.

Tu surgiste no teu garboso cavalo, todo emproado, na vaidade das tuas 22 primaveras.

Vinhas de ver os trabalhos nas propriedades de teu pai, soube-o depois.

Nisto surgiu-nos, do lado das «raposeiras», uma criancinha descalça, chorando convulsamente, / 205 / segura pela mão dura do guarda da herdade.

Indagaste.

Ouvi a guarda contar-te tudo... Que o rapazola havia roubado fruta lá na quinta e que havia entrado pelo curral, soltando os suínos que haviam feito um estrago incalculável.

Vi-te descer do cavalo e encaminhares-te para a criança. Temi pela integridade física do pobre miúdo, oh se temi!

A criança à tua aproximação chorou mais.

Coitadinha, dava dó! Aquelas lágrimas eram bem o testemunho de todo um grande arrependimento.

Lembra-me que lhe disseste:

– «Não chores mais. Não te faço mal se prometes não tornar a fazer o mesmo».

E ante o choro convulsivo da criança, reparei que lhe deste o taleguito da fruta e o mandaste embora.

Lancei-te um olhar de agradecimento pelo desfecho daquela cena e notei dias depois, quando te encontrei a socorrer monetária e moralmente uma pobre velhota que jazia bastante enferma no leito, que tinhas um coração generoso.

Comecei a amar-te em silêncio, a dedicar-me toda à filantropia dos tuas acções.

Tu compreendeste-me e dias depois rejubilei com a ideia que também seria amada por ti.

Não me enganei. O idílio começou e eu comecei a votar-me toda àquela nossa fascinação.

Mas. .. terminaram as férias e a separação chegou.

Numa tarde pesadamente triste, com umas nuvens plúmbeas a correrem desordenadamente pelo espaço, o meu pai mandou o Ricardo lá abaixo, à manada das éguas, buscar a russa para me levar à estação.

Nem eu me quero lembrar de toda a saudade que senti, senão ficaria para aqui toda a noite a carpir a minha amargura.

Só sei que quando voltei de visita às minhas comadres, já a russa estava aparelhada na charrete que estacionava á minha porta.

Entrei em casa e no jantar nem lhe toquei.

Lembra-me que quando saí à minha porta, vinha a chorar copiosamente. Meu pai quis saber os motivos porque chorava.

Menti. Que eram saudades... Saudades de todos, que eu começava a sentir antecipadamente.

Mas não! Eram saudades sim, mas saudades. Mas, saudades dos momentos que passáramos juntos, no enlevo do nosso amor.

Quando me sentei no banco corredio da charrete, fiquei assim quieta, pensativa.

A Natureza estava silenciosa e àquela hora, em que morria para mim um crepúsculo cheiinho de saudades, viam-se ali pelo monte sentadas nas soleiras das portas, o mulherio a confidenciar agruras.

Absorta, intimamente absorta, quando o meu pai, sentado ao meu lado, deu o sinal de partida, nem eu tive coragem de olhar para traz mais uma vez.

Chegada que fui à capital, encafuei-me no meu quarto e revi todas as recordações dos dias que passamos juntos.

E recordou-me as tardes lá do / 206 / teu monte e parecia que estava a ver as parelhas a caminho do chafariz, os rebanhos apascentando em redor da cerca do VaI de Rio, as mulheres vindas do trabalho em grupos, sempre a cantar, o Leão e o Tigre tão meus amigos, a correrem atrás dos carros que passavam à desfilada para a aldeia.

Tu aparecias-me sobre isto tudo, nas tuas calças e jaqueta curta à lavrador, chapéu de aba larga e botas caneleiras, a dar ordens e a receber mesuras da criadagem que te saudava.

Que saudades que eu sentia, que saudades!

Senti toda a nostalgia da minha terra alentejana, toda a amargura do exilado que sofre com a distância incomensurável do seu torrão.

E soluçante abafei as minhas lágrimas, no travesseiro rendado da minha caminha.

Dias depois, recebi uma carta tua, uma extensa carta tua em que me falavas de projectos, de saudades, de muitas coisas mais que me não lembra agora e no final vinha uma comunicação bastante dolorosa para mim.

Que tinhas falado a teu pai – dizias – no desejo de te unires a mim. Teu pai havia-te falado asperamente, terminando por concluir: «Com essa mulher não, nunca o consentirei. Uma peralvilha qualquer que apenas tem de seu um «monteco» metido numa herdade que mais parece uma courela e um pouco de educação que recebeu.

Tens a tua prima da Murtosa que não é má rapariga e que / 207 / além disso possui uma fortuna fabulosa. Com essa sim, com essa é que deves casar e se não casares... Fica sabendo que as terras e os gados que por aí existem em meu nome vai tudo para tua irmã».

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Naquela manhã de sol muito vivo, com gaivotas a depenicar as imundícies balouçantes nas águas turvas do Tejo, nós metidos no vapor para o Barreiro, levávamos nas algibeiras um bilhete de 2.ª classe para Setúbal.

Lembras-te? Foste-me esperar à porta da Universidade e falaste-me mais uma vez, no desejo do matrimónio.

Eu escutava-te embevecida.

Falaste-me em ser independente, trabalhares, construir o nosso ninho, com sacrifício embora, sem estar enfim à mercê de teus pais que odiavam o nosso projectado enlace.

Eu bebia sofregamente as tuas palavras, acreditava cegamente nos projectos.

Abandonei estudos, planos de doutoramento, um lugar apetecido na sociedade e segui presa ao teu coração orgulhosa da tua autoridade moral.

Passaram meses e eu tenho sido sempre a companheira dedicada na luta pela vida, o incentivo que precisas para poderes vencer as tuas horas más, a camarada que te tem ajudado a construir o futuro.

Agora aqui estou, rogando-te, suplicando-te pela nossa felicidade, que me digas as causas da tua amargura, a amargura, a amargura que tanto te atormenta. Carlos VaI de Rio voltou-se serenamente, olhou-a de frente com os olhos velados de sofrimento e proferiu:

– É que hoje recebi um telegrama noticiando-me a morte dum homem!

E num murmúrio fundo concluiu: – Morreu meu pai!

Luís Vieira Braz

 

Página anterior

Índice Página seguinte