VILA VIÇOSA
SOLAR AFORTUNADO
de muitos e vários príncipes
Pelo Dr. SOUSA COSTA
(gravuras em madeira do pintor António Lino)
Assim
mesmo. Solar afortunado de muitos e vários Príncipes. Podíamos dizer
também, igualmente autorizados pelo frescor do seu nome e pelo acervo
das suas nobrezas: – «Vila Viçosa, Flor de Heráldica». Saberia a título
de romance, desses que andam nos Cancioneiros medievais daquém e dalém
Tejo. Demais, sendo, como é, o nome de baptismo e o sobrenome de legenda
de agregado urbano, que no brilho dos seus mármores, na composição dos
seus fogos e na cadência dos seus ritmos – posso jurá-lo, porque a
conheço de vista, há quantos anos, reúne todos os elementos substanciais
de poema lírico.
Não
há dúvida: – basta declinar-lhe o nome para nos surpreendermos na
sensação de que da nossa língua se desprendem fragrâncias subtis de
ramos em flor e saborosos eflúvios de frutos maduros.
Eu sei. Deu-lhe vida e haveres o Rei
campeador D. Afonso III. Deu-lhe vida e haveres e levou-a à pia de
baptismo. Por seus impulsos guerreiros, natural seria que lhe desse nome
de guerra. Mas não. Como se fosse Poeta, baptizou-a com nome que soa a
mote de vilancete.
É caso frequente. Quantas vezes, para ser
Poeta, a lei obrigatoriamente impõe ao preopinante que não faça versos!
O Rei campeador da gesta afonsina nunca perpetrou rimas, ao que se diz,
senão com a ponta da sua espada – em golpes fulgurantes, em tinidos
sincrónicos, nas armaduras inimigas. E foi o Poeta que deu a Portugal o
poema de Vila Viçosa – com o seu título de vilancete. E foi o Poeta que
nobilitou os cancioneiros medievos com as trovas d'EI-Rei D. Dinis, seu
filho, o Rei trovador. E de tal sorte Portugal se desvaneceu do poema,
/
169 / glosando-lhe o mote, que
ouvirmos a glosa do delicioso vilancete o mesmo é que embalar o ouvido e
o coração aos acordes das liras de Mestre Gil Vicente e do Grão-Mestre
Luís de Camões.
Isto que aí fica alinhavado e o mais que vou
oferecer ao inventário estou a considerá-lo e a reconsiderá-lo na
presença de obra descritiva do «Museu Biblioteca de Vila Viçosa». É
verdade: uma obra evocativa de Museu e de Biblioteca pertenças de Vila
Viçosa não podia fugir à regra – tinha de rescender a flores e frutos de
écloga. Daí a sugestão da abertura desta pobre rapsódia rústica. Daí a
sugestão do mais que se alinhava no pautado subsequente. Daí os meus
agradecimentos, pelo encanto usufruído à dadora daquela obra – a
benemérita «Fundação da Casa de Bragança», que à voz ilustre do seu
espírito santo de orelha, o sr. dr. António Luís Gomes, tem cumulado de
benfeitorias Vila Viçosa e seu Paço Ducal.
Ler, meditar e admirar a bela evocação é
observar, em toda a sua realidade, o afortunado Solar de Príncipes. Vila
Viçosa, filha de Príncipes, torna-se, consolidado o Reino sobre os
alicerces de Aljubarrota, o baluarte do fronteiro-mor Nun'Álvares
Pereira – Príncipe da Bravura e da Lealdade. Pouco depois, pelo
consórcio da filha do Galaaz lusíada com o Conde de Barcelos, filho
bastardo de D. João I, converte-se no berço da Dinastia de Bragança.
A Dinastia de Bragança cresce e
multiplica-se na alcáçova do castelo roqueiro – continuando a bracejar e
a frutificar no Paço Ducal o bastão dos Duques nos seus domínios,
valendo por ceptro de realeza.
Vejo erguerem-se diante de mim os vultos
altaneiros dos primitivos Duques.
/ 170 / Sobressai, entre os seus
pares, o de D. Fernando lI, cabeça da conjura da nobreza contra o
Príncipe Perfeito, El-Rei D. João lI, cabeça altaneira de Príncipe
Rebelde, rolando no cadafalso de Évora. Adianta-se logo a figura
romanesca do Duque D. Jaime, filho do justiçado, as mãos ensanguentadas
no sangue... talvez inocente da linda Leonor de Gusmão, por sua voz
acusada de incerto descuido de amor, por seu braço escarchada em noite
de vindicta.
O fim trágico de Leonor de Gusmão traz-nos à
memória outra Gusmão, mulher do Duque D. João lI, a futura Rainha Luísa
de Gusmão, o futuro Rei D. João IV. Logo os meus olhos se deslumbram à
visão do casamento desse Príncipe retardatário da Renascença – que
nenhum dos Príncipes faustosos da Roma e Florença de Quinhentos excedeu
na pompa dos seus cortejos nupciais, consoante consta da crónica notável
do insigne cronista Hipólito Raposo. E o meu coração estremece à
arrancada do Duque D. João II a caminho de Lisboa. Sai do Terreiro do
Paço de Vila Viçosa – hoje autenticado pelo selo régio da Dinastia
brigantina, a estátua equestre, milagre de ressurreição, devida ao
Mestre estatuário Francisco Franco. Sai do Terreiro do Paço de Vila
Viçosa, ainda Duque, D. João lI, para entrar ao repique dos sinos, ao
troar da artilharia, no Terreiro do Paço de Lisboa, por clero, nobreza e
povo aclamado Rei D. João IV.
O desfile de Príncipes continua desde D.
Teodósio, que a morte levou antes de ser Rei; a D. Manuel II, que a
morte de D. Luís Filipe promoveu a Rei de Portugal – Príncipe da
Desventura, que o desterro elegeu Príncipe Desejado... até dos que o
desterraram.
Vila Viçosa! Solar de muitos vários
Príncipes! Agora são outros Príncipes, sangue real do Génio e da Graça,
filhos legítimos da afortunada vila alentejana que me dilatam os olhos e
alvoroçam o coração – a lembrança daqueles a requerer e a impor a vénia
a estes.
E Henrique Pousão, Príncipe da pintura
moderna daquém e dalém Pirenéus, Mestre Impressionista do último quartel
do século XIX, nado à luz do calor, ao surto policrómico da opulenta
Vila Viçosa, na luz dos seus quadros, no calor das suas tintas, na
vibração dos seus coloridos, na fulguração dos seus brancos, arde, por
todo o sempre. o Sol do Alentejo, relampejando na neve cálida dos
«montes» regionais, sonhando o mistério dos horizontes insondáveis.
Florbela Espanca? Fica no ar ao pronunciar
este nome, um olor de madressilva, um sussurro da abelha, um sabor do
mel. E Vila Viçosa, solar desta Princesa da Lenda e do Verso,
afigura-se-nos, além de tudo mais, bem-aventurada colmeia. |