– A minha vontade era acabar com isto duma
vez... Dar com a cabeça numa pedra... E essa criança que não há maneira
de se calar!
– Ó homem de Deus, não fales assim...
Ele levantou-se bruscamente, passou a mão
pela testa húmida e foi à janelita rasgada no barracão de madeira. O céu
negro parecia abrir, fender, lançar sobre o mundo um novo dilúvio. Um
galo cantou longe, melancólico; o rodado duma carroça rangeu, chiou lá
fora. No terreno baldio algumas pedras rolaram caindo lá em baixo nos
telhados de zinco.
A criança choramingou de novo.
O Lemos veio da janela até ao meio do
barracão, fixou os olhos empapuçados na criança deitada no berço de
madeira e deixou-se cair pesadamente no banco de pinho.
A mulher olhava-o, de rosto aflito.
– E isto! Primeiro, a seca que me matou o
gado, que me queimou tudo o que tinha, que tudo matou de sede! A seguir,
vêm as enxurradas e é chuva de dia e de noite!
As espigas esquálidas haviam tombado
arrasadas pela canícula. Agora tinham chegado as chuvas torrenciais.
– Tu ficas para ai a murmurar nem sei o quê
– continuou ele – e a criança chora, chora!... Se isto não é de dar em
doido...
– Homem...
– Aqui não há homem... já não há nada...
Grossas bátegas de água recomeçaram a cair
sobre o barracão num ruído ensurdecedor. Pelas fendas da madeira viam-se
goticolositas de água que iam avolumando e fazendo charco.
– Se isto dura muito afogamo-nos aqui.
Dizendo isto levantou-se de novo. A criança
chorava.
– Que diacho tens... pequerrucho!... Hein?
E arredou para o outro canto o berçosito de
madeira. A criança deixou de chorar.
Alguns minutos depois um ruído estranho
despertou-os da modorra em que iam ficando. Um pedaço de trave que
sustinha o tecto rangeu, quebrou e veio cair pesadamente no local exacto
onde a criança estivera.
O Lemos estremeceu, perdendo a cor. Ele e a
mulher entreolharam-se, a tremer. A criança não chorava mais.
Acolitando a chuva, que desabava agora com
uma violência terrível, o vento soprava rijo. O frágil barracão tinha
leves estremecimentos de arrepio e pelas gretas da porta ele soprava,
ele fazia voar a cortinita de pano na chaminé. A mulher chegou-se para
junto do berço e tapou melhor o menino. No meio da casa a água fazia
poça, entrava por onde podia, salpicava o rosto do Lemos que ia tapando
aqui, tapando ali. Era inútil!
Perscrutou pela janela a água que vinha em
torrente revolvendo as terras vermelhas e as terras negras que
borbulhavam, cresciam, espilrando, entrechocando-se, aumentando sempre.
Um vago sobressalto de terror invadiu-o repentinamente. O barracão
corria perigo! «Se eu estivesse só» – pensava. Mas, a mulher e o
filhito? Sair era agora impossível. Ficar era a loucura, a morte. Dum
minuto para o outro, como um pedaço de papelão, tudo aquilo ruiria.
O coração saltava-lhe no peito.
A água caia com desespero implacável, cruel.
E as terras negras e as terras vermelhas eram arremessadas em lama de
encontro ao barracão.
Momento de angústia. Se aquilo durasse muito
seria o fim.
– Valha-nos Deus! – gemeu a mulher, aflita.
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132 /
– Valha-nos Deus! – exclamou ele
cepticamente – Primeiro, foi a seca; agora, é a cheia! Sim, valha-nos
Deus!...
A mulher nada disse, fitando a criancinha
que só por grande milagre se salvara há pouco. Adormecida, parecia
sorrir. Na sua cabecita não haviam dolorosas inquietações. «O que era
aquilo lá fora?... A chuva? – Oh, como era tão bonita a chuva!»
Crispando os punhos, o Lemos andava dum lado
para o outro. Queria fazer o impossível. O berço foi colocado sobre a
mesa. A mulher aconchegou-se-lhe e ficou de pé na cama. A água entrava
agora pelo telhado e pelas frinchas da porta. O vento furioso passava,
parecia esperar um instante, fugia, rodopiava, vinha de novo mais
ameaçador ainda.
E o barracão tremia.
* * *
Aquilo começou assim: a trave partida cedeu
e uma parte do telhado veio despedaçar-se cá em baixo. Logo, uma
torrente de água desabou lá dentro. O vento ciclónico, flagelando a
débil estrutura, atingira proporções descomunais. O gigante soprava como
nunca. Apavorada, a mulher agarrara-se ao filhito, soluçando como louca.
O Lemos, encharcado, corria a remediar aqui e ali para salvar, pelo
menos, a mulher e a criança; Mas a água atingia já quase meio metro de
altura e entrava sempre.
Lá em cima, pelo telhado desfeito, viam-se
nuvens cor de chumbo que se rasgavam para serem cosidas de novo num
remendo mais escuro.
– Não podemos sair... Daqui à casa mais
próxima vão duzentos metros... Não podemos sair...
A água entrava a jorros, em golfadas, em
catadupas. Sacudida com ira a porta mal oferecia resistência.
Chuva e vento. Parecia que no mundo algo
mais não existia. Lá fora a enxurrada era apavorante. Um rio de
destroços passava continuamente. E dentro do barracão ela trepava
sempre.
A mulher, gelada, subira ao cimo da mesa que
dificilmente se sustinha sem boiar. O Lemos empurrara tudo o que tinha à
mão para junto da porta. Se ao menos pudesse tapar aquele buraco do
tecto! Mas era impossível. A chuva fustigava-lhe o rosto e o vento feria
como alfinetadas. Mas ele, insensível a tudo, parecia nada sentir. O
olhar vazio, as mãos calosas pregando aqui, sustendo além.
– Porque não pára de chover! – suspirava ele
cerrando os dentes.
Mas a chuva não o ouvia. E o vento parecia
gargalhar pelos cantos: ia e vinha... ia e vinha...
* * *
Um dos lados da parede de madeira sofreu o
choque de qualquer coisa pesada que ali se foi projectar e ela rangeu,
abriu fenda, dilacerou por completo. E, então, a água entrou com
toda a sua fúria.
Eles viram-se envolvidos por milhares de braços invisíveis que os faziam
girar como piruetas e foram no caudal, à mistura com os destroços vindos
de outros lugares. Quiseram gritar, levantar os braços mas a água era
mais forte e esbracejando foram indo, indo como os destroços e a terra
negra e a terra vermelha, aos empurrões.
Nada onde se agarrassem. O terreno
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e a violência daquele mar parecia não ter limites. Feridos,
esfarrapados, a água chicoteava-os sem piedade. Um tronco de árvore
descia com uma velocidade doida. Cada vez ganhava mais terreno até que
apanhou o Lemos pelo peito. Ele abriu a boca engolindo a água barrenta e
submergiu. Tornou a aparecer mais adiante e lá foi levado pela corrente
até desaparecer para sempre num redemoinho infernal onde tudo era
engolido.
A
mulher, projectada para um lado e outro, segurara-se ao tampão enorme
duma mesa. Os dedos agarravam com força; os cabelos revoltos não lhe
deixavam ver nada naquela viagem diabólica. E ela era empurrada à
mistura com objectos desfeitos, pedras e arbustos, roupa esfrangalhada.
Nada sentia. Só um tão grande pensamento que
se tornava minúsculo no meio daquela importância louca: o seu filhito.
Já chegara à povoação. A mesma desgraça: gente sem casa; os homens sobre
os telhados semi-desfeitos iam salvando o que podiam.
Desmaiada, foi recolhida por dois braços
vigorosos que a puxaram para cima.
* * *
Quando abriu os olhos, a primeira coisa que
pensou foi no seu filhito. Olhou à roda, horrorizada.
Como doida ia lançar-se à água...
A chuva caia agora mansamente. O vento
corria mais débil. Traves de madeira, portas quebradas num feixe,
caixilhos de janela, roupas cheias de barro, tudo numa amálgama
aflitiva, deslizavam agora ante o seu olhar.
Nisto a vista turvou-se-lhe. Fechou e tornou
a abrir os olhos como se visionasse, como se estivesse sonhando. Quis
chorar, sorrir, correr, erguer os braços ao céu.
Suavemente, no seu berço de madeira tosca, o
filhito vinha singrando na corrente mais calma. O seu rostozito de
criança parecia aureolado e parecia sorrir. E parecia, com suas mãozitas
róseas, acenar à mãe que o olhava em êxtase.
Como Moisés – salvo das águas – ele dava a
impressão de vir deitado num leito de púrpura e o seu cabelito ralo
luzia como oiro.
O arco-íris surgiu no céu, em toda a sua
pompa.
E o menino quedou iluminado e lindo. |