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Memórias Celulósicas


Acidente de percurso (crónica)

Depois de uma semana com algumas noites de pouco dormir, passadas na fábrica, e com o “stress” próprio de operações de arranque e das responsabilidades que sobre nós recaíam, era natural que sentisse necessidade de desanuviar no fim de semana. Peguei no operador da Socel, José Barriga Gordinho (a fazer jus ao nome, gordinho de barriga), de folga nesse dia, sábado 22 de Junho de 1974, e fomos dar uma volta até à capital das Astúrias, a cidade de Oviedo. Entre outras coisas, fizemos compras. No Cortefiel, na calle Uria n.º 52, comprei uma “americana” e um “pantalon”, duas camisas e “vários” que não recordo do que se tratava.

A “boutique” tinha duas portas de vidro excepcionalmente limpas, uma aberta e outra fechada. Ao sair da loja, tentei fazê-lo pela porta fechada e, claro, o vidro impediu-me, para além de me fazer retroceder após violenta cabeçada no mesmo, o que me fez ver estrelas.

Passado o efeito do impacto e porque se aproximava a hora do almoço, fomos abancar num restaurante próximo, para uns “callos à madrilena” e uma “ternera empanada” (empanado viria eu ficar pouco tempo depois).

Como entretanto começasse a chover, e passeio à chuva não tinha piada, resolvemos regressar a Navia.

Passados poucos quilómetros, na “carretera” N-634, cheia de curvas e a subir nesses primeiros quilómetros, ao sair de uma dessas curvas (e a partir daqui é o relato posterior do Gordinho) fosse pelo cansaço ou consequências da cabeçada horas antes ou dos “callos”, perco os sentidos, descaio para o lado esquerdo. Mãos agarradas ao volante acompanham esse movimento e o carro inflecte para a esquerda, atravessando-se na estrada.

Em sentido contrário vinha o sr. Carlos Sastre Gonzalez, “empleado e vecino de Oviedo”, que não tem tempo de evitar violenta colisão com o meu Toyota, entretanto atravessado na estrada.

A parte da frente do meu veículo ficou desfeita, de tal modo que não foi possível a sua posterior recuperação. Para além de umas arranhadelas no Gordinho, felizmente que nada se passou de grave com os nossos físicos.

Acordei já na ambulância a caminho do hospital, onde fomos todos inspeccionados. O sr. Sastre Gonzalez deve ter ficado pior, ou ter-se-á aproveitado do facto, porque esteve 24 dias sem trabalhar a recuperar de lesões (?!).

Entretanto fui julgado em doze de Dezembro. Faltei ao julgamento, porque achei que não ganhava nada com o facto. O Gordinho já havia regressado a Portugal, não tinha jeito estar a fazê-lo deslocar para depor e era então a minha palavra contra a do “vecino” de Oviedo.

E foi assim, que segundo a “sentencia”, eu ia “a velocidade inadequada” (com o pé fora do acelerador e a subir já devia estar praticamente parado!), “la calzada se encontrava mojada” e que “perdió el controle de la dirección del coche”. E a condenação aparece como “a la pena de mil pesetas de multa, sufiendo, caso de impago, el arresto subsidiario correspondente; repreension privada; retirada de su carnet de conducir por término de um mês”; “a abone al perjudicado” de unas decenas de pesetas y al pago de las costas processuales”.

Como me vinha embora daí a dias, não paguei multas (as indemnizações ao “perjudicado” ficaram a cargo da companhia de seguros). Daí que ainda hoje sou devedor ao estado espanhol e sujeito ao correspondente “arresto”.

O pessoal da CPC ainda voltaria a Navia no mês de Janeiro de 1975. Não para evitar o pagamento a que fui sentenciado, mas porque estaria impedido de conduzir e ainda por outra razão mais contundente, já não voltei a Navia, e proporcionei a Joaquim Gonçalves a sua ida para finalizar o arranque. Ficou contente, como se compreende, mas não chegou a saber as verdadeiras razões da sua ida.

E a principal foi… a de um pai de uma miúda de 18 anos (que dera para se apaixonar perdidamente pela minha pessoa), que ao saber que era casado e que estava a desviar a sua pequena, prometeu, se me apanhasse, enfiar-me um balázio “en el culo”.

Pela ameaça, e porque quem tem “culo” tem medo, resolvi “quedar-me” por cá…


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