Apontamentos históricos – A incúria portuguesa nas relações com a China – De Lisboa a Macau – Macau pitoresco – O ano novo china – A procissão do Dragão

«Leal Cidade do Santo Nome de Deus de Macau, na China, não há outra mais leal». Tal é a legenda que, em parte, circunda o brasão de armas da minúscula, mas gloriosa, colónia portuguesa no Extremo Oriente, e que, em extenso, se via esculpida na fachada do vetusto edifício do leal Senado da Câmara macaense.

Macau deve merecer a todos os portugueses uma particular veneração, por ter sido o único torrão pátrio em que a bandeira das quinas não foi arriada durante a dominação castelhana.

Atacada a cidade pelos holandeses em 1622, quando baniram o jugo da Espanha, e querendo tomá-la, como se fora colónia espanhola, defendeu-se Macau heroicamente, infligindo completa derrota aos invasores.

É no chamado: Campo da Vitória, em que se feriu a batalha, que está o padrão comemorativo deste feito guerreiro, realizando-se cada ano, a 23 de Junho, uma procissão em cumprimento do voto então feito pelos macaístas, em acção de graças pelo glorioso resultado da campanha.

Mas, em especial para os portugueses da metrópole que habitaram Macau, e mais ainda, para os que nessa colónia passaram alguns anos da juventude, as dolorosas contingências porque a nossa / 459 / colónia da China está passando devem ser sentidas, como se deploram os revezes experimentados por um verdadeiro amigo. E, de envolta com o pesar, brota irreprimível indignação contra a desalmada administração central, que tem feito ouvidos de mercador aos incessantes avisos de tantos governadores patriotas e dedicados, há meio século pedindo que se pusesse termo ao proverbial desleixo com que os governos de Lisboa deixaram perder óptimos e repetidos ensejos de regularizarmos as nossas relações com o Império Celeste, quanto ao definitivo reconhecimento da nacionalidade portuguesa de Macau.

O que se tem passado é simplesmente espantoso. Todas as vezes que as nações da Europa corrigiram a China, e lhe arrancaram concessões, Portugal fez-se notar pela ausência. Quando o Império do Filho do Céu, livre de conflitos com as potências da Europa, mais arrogante se mostra na intenção de nos espoliar da colónia, cujo domínio, já inclusivamente foi por nós reivindicado pelas armas, é então que os atilados governos de Lisboa tentam negociações, que até hoje só deram em resultado escárnios e ludíbrios, mas que desta vez prenunciam consequências ainda mais graves.

O sudário é tremendo, mas não será ocioso desenrolá-lo aos olhos de todos os portugueses, neste momento em que o nosso domínio sobre Macau se acha seriamente ameaçado, como acreditamos que nunca esteve, porque a China de hoje não é a mesma dos antigos tempos.

Há trinta e tantos anos, quando habitámos Macau, podia dizer-se, com verdade, que ainda vigorava o antigo aforismo diplomático de que: «A China faz tudo quanto se lhe consente e consente tudo que se lhe faz.»

Já nessa época, contudo, o Império Celeste se armava, instruía e tratava de progredir. Por duas vezes que fomos a Cantão, como secretário de comissões encarregados de aplanar com o vice-rei dos Dois Quangs, dificuldades todos os dias nascidas da questão crónica do hopú, as alfândegas chinesas das imediações de Macau, a canhoneira Tejo, navio chefe da nossa exígua / 460 / estação naval no Extremo Oriente, era uma unidade guerreira de muito menor valor do que os navios de guerra chineses que ali se viam fundeados, na frente do Chamine, a concessão europeia.

A China, desde então progrediu muito; a vitória dos japoneses sobre os russos veio dar mais alentos a essa propensão da raça amarela para se julgar superior aos fanequai, os diabos brancos, como os europeus ouvem chamar-se nas ruas de Cantão; finalmente, o governo de Pequim, tendo disseminado pelas cortes da Europa a sua representação diplomática, está hoje perfeitamente ao facto do modo de ser e do valor material e moral de cada nação europeia.

Para nós, é ponto de fé que as ousadias recentes da China, orientadas pela forma mais perigosa que até hoje tem revestido, e dado o conhecimento directo que, por bastante tempo, tivemos do carácter e arteirices dos celestes, se não dariam, se eles não estivessem perfeitamente a par do descalabro interno que vai por este malfadado país.

Portugal, que nunca soube administrar-se, teve, na Idade Média, e ainda conserva, duas assinaladas aptidões: para a navegação e para a guerra. Ainda hoje, quase sem recursos e sem material de guerra, fazemos nas colónias o que nenhuma outra nação é capaz de fazer.

Foi em prémio e mercê dessas virtudes, que nesses tempos remotos eram primaciais, que em 1556 limpámos os mares da China da pirataria que afrontava o comércio chinês, e nos foi concedido estabelecer-nos em Comune, por nós crismado em Macau.

Mais tarde, começou a ser-nos vedada a franca entrada na ilha de Hiang Chan, construindo-se uma muralha a separar a colónia portuguesa do resto da província de Cantão. Nessa muralha havia uma porta, que só uma vez por semana se abria para as relações comerciais. Veio essa porta a denominar-se: Porta do cerco, não existindo já dela, quando habitámos Macau, vestígios, mas apenas um verdadeiro arco em seu lugar. Ora, para lá desse arco, talvez dois quilómetros, numa cumeada sobranceira ao rio de Macau, e fronteira à povoação chinesa da Casa Branca, a primeira que tem mandarim na fronteira chinesa, / 461 / fica a fortaleza de Passaleão, que nós tomámos pelas armas, em seguida ao assassinato do governador Ferreira do Amaral, em 22 de Agosto de 1849, quando os chinas tentaram levantar-se em Macau contra o nosso domínio. Bastava este facto, se outros títulos não possuíssemos, para nos validar a posse da colónia.

Mas o desleixo dos governos fez que sempre se negassem os meios eficazes pedidos pelos enérgicos governadores que Macau tem tido, para, em parte pela força, e em parte beneficiando de ensejos políticos, que mais de uma vez se tem dado, arrancarmos à China, por via dum tratado, o reconhecimento formal do nosso domínio.

Um dos mais flagrantes actos do nosso relaxamento moral foi não tirarmos a devida satisfação do infame assassinato daquele heróico português.

João Maria Ferreira do Amaral era um ilustre oficial superior da marinha portuguesa, e um valente, em toda a extensão da palavra. Era um veterano das guerras da independência no Brasil e um dos bravos que desembarcaram no Mindelo. Chamavam-lhe na armada: O Maneta. No combate naval de Itaparica, em 1823, sendo guarda-marinha na guarnição do brigue Audaz, uma bala feriu-o gravemente no braço direito. Levado à força ao hospital de sangue, porque não queria abandonar a acção, foi-lhe o braço amputado, e sofrendo a operação com a maior serenidade, apenas lhe caiu o braço, ergueu-se da improvisada cadeira operatória, e atirando ao ar o ensanguentado despojo, gritou: Viva Portugal!

Mandado como governador para Macau, dedicou-se energicamente a restabelecer o prestígio do nome português. Havia então na colónia duas alfândegas: o hopú chinês, cujos rendimentos eram cobrados pelos mandarins, e a alfândega portuguesa, de cujas receitas se pagavam as despesas da colónia. Queria-se fazer de Macau porto franco, para lhe criar, pelo comércio livre, maiores rendimentos, e separá-lo do governo da Índia, a que estava sujeito.

Não podia ser de outra forma desde que, após a guerra de 1842, a Inglaterra se assenhoreara da ilha de Hong-Kong, criando ali um porto-franco, cuja vizinhança era terrível para o comércio de Macau.

Pouco durou o enérgico e inteligente governo de Ferreira do Amaral. Representava o destemido marinheiro no parlamento a província de Angola quando, em 1848, foi nomeado governador de Macau. Apenas chegado à colónia intimou aos mandarins fiscais a retirada, e, como lhe não obedecessem, expulsou-os, mandando picar o mastro do hopú. Logo se ergueu contra ele a sanha traiçoeira dos chinas, lançando-se mão do conhecido expediente das sociedades secretas, de que os estadistas celestes se valem sempre, por não terem a coragem necessária para arrostar às claras os adversários.

Assim foi com a célebre revolta dos Taipings, mais tarde com a dos Pavilhões Negros, e lá está sendo agora o movimento da sociedade secreta intitulada Chi-chi-Ui, que se diz estar promovendo, além de outros perigosos expedientes, o êxodo dos chinas abastados de Macau.

No pouco tempo que governou Macau, Ferreira do Amaral tomou posse da ilha da / 462 / Taipa, organizou a defesa, lançou tributos, abriu de vez a Porta do Cerco e construiu vias de comunicação no limitado território português.

Temendo-o, os chinas resolveram matá-lo traiçoeiramente. O boato da premeditada infâmia divulgou-se, mas a valentia do governador tornava-o inacessível a conselhos de prudência e a usar de precauções.

Em 22 de Agosto de 1849, quando Ferreira do Amaral se dispunha a sair do palácio, para fazer o seu habitual passeio a cavalo até à Porta do Cerco, um alar, de nome Assan (que o autor destas linhas, assim como o filho do assassinado, o actual vice-almirante sr. Ferreira do Amaral, ainda conheceram, já velho e alquebrado, no cargo de chefe dos criados do palácio do governo), caindo-lhe de joelhos na frente, abraçou-se-lhe às pernas, suplicando-lhe que não saísse, porque naquele dia planeavam tirar-lhe a vida.

O governador não o atendeu; diz-se até que o ameaçou com o chicote para que o deixasse. Montou, seguiu pela Praia Grande, passou as Portas de S. Lázaro, o Campo da Vitória, desceu a Rampa dos Cavaleiros e, pela estrada em linha recta, entestou com a Porta do Cerco. Saída esta, segundo a versão que é mais corrente em Macau, cavalgou ainda algumas dezenas de metros já em território china. Aí o caminho é um simples carreiro. Para a esquerda, o terreno desce numa rampa até às várzeas de arroz na margem do rio. A meio da encosta já então existia um agrupamento de miseráveis palhoças, habitadas por chinas leprosos e indigentes. Lá os vi muitas vezes esmolando a beira do caminho, ou ajoelhados, a bater cabeça, nas sepulturas que, para a direita, se alastram pelo campo, até aos arrozais e bambuais que encobrem a Casa Branca.

Como de costume, os leprosos mendigos rodearam o governador, pedindo-lhe esmola; e, como de costume também, o valente maneta segurou as rédeas sob o coto, levando a algibeira à mão direita. Imediatamente alguns desses mendigos, cujas mãos se ocultavam sob as cabaias, lhe arrojaram aos olhos punhados de cal, derribando-o logo do cavalo, acometendo-o a golpes de taifó, com que lhe deceparam a cabeça.

Diz-se que, ferido também, o ajudante que o acompanhava não pôde suster o cavalo que, espavorido, partiu em direcção à Porta do Cerco.

O corpo do valente marinheiro foi encontrado no local do crime. Só a cabeça desaparecera, naturalmente por ser necessária como documento para se cobrar a paga da vil traição. Certo é que, passado tempo, como escreve nas Alfândegas chinesas do porto de Macau, ou nas Efemérides de Macau (cremos ser um destes o título da obra que há muito lemos e não temos agora presente) António Feliciano Marques Pereira veio descendo o rio, das águas chinas para as águas portuguesas, uma champana, pequeno barco chinês de fundo chato, ao abandono, e nele, sobre um monte de cal, achou-se a cabeça do assassinado governador.

Era o momento próprio, ou Jamais; como dizem os franceses, para nós pedirmos contas aos celestes e tomá-las à força. Se as não dessem completas.

Mas, nessa contingência, esquecemo-nos de que a única coisa de que nos, portugueses, / 463 / com poucos recursos, sabemos tirar grandes resultados, é o emprego da manu militari.

Tudo ficou na sufocação da revolta, e na gloriosa, mas estéril, jornada até á fortaleza de Passaleão!

Mas prossigamos, que a via dolorosa das nossas relações com o Império do Meio tem ainda outros marcos miliários a atestarem o inqualificável desleixo e o abastardamento da passada energia dos governos portugueses.

Mais tarde um outro governador de Macau, Isidoro Guimarães, também oficial superior da marinha, conseguiu negociar um tratado com a China, em que era reconhecida a nacionalidade portuguesa de Macau. Num dos artigos dizia-se expressamente: Macau antigamente (jadis) na província de Cantão.

Dois anos depois, ao fazer-se a troca dos exemplares do tratado para sua ratificação, o novo governador de Macau e ministro plenipotenciário de Portugal, o coronel de engenharia José Maria Coelho do Amaral, passou por novo desaire.

Salvo erro, as ratificações trocavam-se em Pequim; era secretário da missão o falecido publicista Marques Pereira, a quem já me referi, e de memória cito o que a tal respeito se encontra na sua obra.

Ao confrontarem-se as cópias do tratado, notou Coelho do Amaral que no documento assinado pelo imperador da China faltava, na versão francesa autenticada pelos sinólogos, a palavra jadis.

Reclamou imediata e energicamente, e após os rodeios, as hesitações, as condolências suaves, em que a diplomacia celeste é mestra, o plenipotenciário china acabou por declarar que Macau não podia ser considerado português.

Coelho do Amaral, erguendo-se arrebatadamente, exclamou indignado:

– Pois se não é português, vão lá conquistá-lo!

E abandonou o pavilhão em que se achavam.

Da mesma forma que procedêramos após o assassínio do governador Amaral, nenhuma satisfação tomámos desta nova ofensa.

Desde então a existência de Macau ficou sendo reconhecidamente contingente, e a missão dos governadores uma luta permanente contra os atrevimentos dos mandarins do hopú e as rabolices do vice-rei de Cantão.

Quantas oportunidades se apresentaram desde o malogro do tratado / 464 / negociado pelo depois visconde da Praia Grande de Macau, para, a sombra de conflitos entre a China e as grandes potências, lhe arrancarmos o reconhecimento da nacionalidade portuguesa de Macau e das ilhas que temos ocupado, mais ou menos efectivamente, todas foram perdidas pela incúria dos governos da metrópole.

Mais ainda; enquanto a colónia teve o seu tempo áureo, o tempo da emigração chinesa para Manila e outros pontos, não fizemos senão concitar com os abusos desse desumano tráfico a má vontade do governo de Pequim e da Inglaterra, sem ao menos cuidarmos em aplicar a obras materiais que melhorassem o porto e a existência de Macau, os rendimentos provindos da emigração. Continuou o assoreamento da entrada e do porto de Macau, continuou a Pedra d'Areca a não permitir a passagem senão a navios de muito pequeno calado; e continuou a sugar-se o rendimento da colónia em remessas para Lisboa, muito superiores às despesas com ela feitas.

(Continua)
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ARTUR LOBO D'ÁVILA
 

 

01-01-2021