Amigo:
tua epístola, de que se exala um tão
sombrio e mortal desalento, veio surpreender-me inesperadamente na doce
paz de espírito em que agora me encontro. Quando a abri, julguei que ia
encontrar o riso límpido e satisfeito de outras eras, o desfilar
rutilante e maravilhoso das ironias desenrolando as suas grandes pompas
de roupagens e de cores, a delícia suave, a graça inefável e
transcendente de viver: e eis que ela me transiu pelo seu pessimismo
feroz e amargo. Efectivamente, dizes tu, eterno insatisfeito, que a
felicidade, cantada em vitoriosas odes e em tantas Musas olímpicas
enramadas do loiro heróico, é tão insignificante para apaziguar as sedes
do infinito das almas, que não merece dos seres pensantes dois passos
mais apressados, na lenta e efémera jornada do universo, para se
alcançar! Mais: – a tua carta, tão atormentada e fúnebre, conclui por
negar com radicada e profunda convicção toda a ventura terrestre. Ao
mesmo tempo, narras-me nela miudamente a ocupação da tua bocejante
existência nos últimos tempos – e pedes-me conselhos.
Parece-me que toda a actividade
cerebral e física parou em ti, sem dúvida porque assim o ordenou a
tirania dum ponto de vista filosófico que sem ser original e moderno é,
entretanto, absolutamente novo nas exigências e nas preocupações do teu
intelecto sagaz. Creio compreender-te. Suprimir com tanta ligeireza e
dum só traço de pena toda a ilusão e toda a poesia (as duas forças
superiores e poderosas que mais directamente influem na prosperidade e
na perfeição da espécie humana) é, além dum ousado e áspero paradoxo,
uma linda e cómoda fórmula de egoísmo, muito estreita, sem dúvida, mas
em todo o caso, um ambiente desafogado para a resumida esfera das tuas
aspirações. Concorda que defino com verdade de análise e argúcia
psicológica o teu actual estado de espírito! Porque, justamente, o que
tu com mais ansiedade desejas é sossegares a tua consciência – essa
integra e forte consciência de antigo crente que eu de tão perto conheci
e admirei. Procuras pô-la de acordo com a tua inércia, tentas
subordiná-la pacientemente as razões que o teu materialismo te sugere
neste momento. Por outras palavras mais claras: – não desejas fazer
nada, concorrer com a tua luminosa inteligência para os cultuais e puros
interesses da civilização e das ideias: preferes, ao gozo íntimo e
intenso que deriva sempre das boas acções e da certeza tão grata do
dever nobremente cumprido, uma perpétua angustia e uma inalterável
atonia. Todo o esforço, toda a luta (ainda mesmo aquela em que há
probabilidades de triunfo) te atemorizam: mas a inacção também perturba
a tua serenidade apenas superficial, como um vivo remorso. Portanto,
desculpas essa languidez e esse desfalecimento de energia, abolindo ou
denominando de ficção uma felicidade que constantemente conduz a ambição
dos homens as grandes conquistas contemporâneas e que a tua lucidez
critica se afigura uma irrealizável quimera.
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Aí está um erro considerável.
Afirmo-te que essa felicidade não é «o sonho vão entre densas brumas» –
como tão categoricamente dizes – e que ela existe real, nítida,
omnipotente. Esta certeza nasceu da observação da minha febril e
incessante vida de lutador. Descobre-a tu também no seu radiante e
sagrado refugio, meu amigo. Tens trinta anos somente, possuis uma
fortuna que permite a realização dos mais fúteis caprichos da tua
fantasia, um cérebro superior, és proprietário de quietas e plácidas
vivendas rurais onde é saboroso deixar correr a imaginação e só te
faltam – penso eu – uma fé acesa e transfiguradora e um cuidado mais
activo que te absorva inteiramente. Negar em plena florescência da
mocidade é uma desoladora abdicação: e a carta que me escreveste
representa o acto indesculpável e melancólico de quem abdica.
Se todos os homens de génio, que
fixaram épocas e orientaram as tendências tumultuosas e inquietas de
séculos agitados, assim raciocinassem, que seria do progresso humano!
Considera, meu vencido burlesco e incomparável «snob» que se o doce
Hesíodo, o poeta que tanto amavas nos esplendores, nas generosidades e
nas paixões sinceras da tua juventude de ontem, houvesse passado os seus
dias errando nas verdes e floridas ilhas dos mares gregos a ouvir o vago
canto das enganadoras sereias ou escutando o zumbido flutuante das
abelhas à volta dos vergeis helénicos, não nos legaria esses versos de
oiro, tão ondulantes, harmoniosos e de uma transparência de límpido
cristal, que fazem ainda hoje o enlevo das almas cultas. Não! A natureza
concebe, em maravilhosas espiritualizações da matéria, as suas criações
perfeitas para que elas a sirvam, isto é, para que elas sejam, nas
incertezas e nas obscuridades do mundo, as divinas guiadoras dos
corações transviados e dos olhos cegos a toda a luz. O movimento é uma
condição imperiosa e fatal da vida: e esconder uma existência como a tua
num estéril e inviolável recato ou consumi-la em abstracções que nada
exprimem, é uma profanação. Move-te também! Com essa indiferença
arrastada pelas coisas da terra e por tudo quanto te' cerca, estás
afrontando no seu curso normal as próprias leis naturais, és uma
anomalia, um caso absurdo e inexplicável. A mim sugeres-me o símbolo
oriental da serpente com o rabo na boca...
Entendo agora que a riqueza, quando
dela se não sabe fazer um uso nobre, concorre para dissolver e aniquilar
toda a seiva moral. Tu, por exemplo, com uma exígua mesada de vinte mil
réis mensais, enquanto foste estudante eras um crente inabalável, cheio
de ímpetos espontâneos e de rasgos eloquentes. Assim te admirei, meu
amigo, fumando o derradeiro cigarro e lendo, com uma insaciada e
desordenada fúria de saber e de remexer ideias, consagrando os teus
moços e viris entusiasmos emocionais aos idealismos mais enigmáticos e
incoerentes e às esperanças que mais faziam pulsar o imenso peito da
humanidade, na sua ansiada superstição de igualdade, de fraternidade e
de concórdia social. Nesses inolvidáveis anos (há tão poucas horas
apagados e que já lá vão tão longe!) o amor – mesmo o amor que malograda
e docilmente confia e se entrega, ou o que se vende por dinheiro – era
para ti uma graça imaterial e casta, misteriosa como as divindades e
como elas tão intangível e eterizada que as impurezas terrenas nunca a
manchavam na sua esplendidez elísia. Foste um idealista arrebatado e se,
como Parsifal, não correste o mundo à procura do Vaso Sagrado, foi
porque o positivismo do teu século de afirmações e de exegeses não
admitia ingenuidades e com receio de que os sarcastas classificassem de
histeria ou de mística loucura essa rude caminhada de paladino. E tudo
isto, com vinte mil réis por mês!
Pois bem. O dinheiro extinguiu no teu
espírito as sobrenaturais irradiações desta suprema crença. Tens hoje,
certamente, muito mais cigarros – fumas até preciosos e aromáticos
charutos em boquilhas de âmbar e oiro: a tua mesa melhorou
sardanapalescamente em vitualhas delicadas e principescos vinhos:
ignoras a humilhação das botas rotas, dos casacos coçados e das gravatas
maculadas, que noutras eras tanto nos desconsolava, nos loiros e
ruidosos domingos de quermesse e de passeio, quando desabrochavam as
primeiras violetas e surgiam na cidade as primeiras mulheres bonitas,
fazendo a grácil, a mimosa iluminura dos asfaltos; mas, desgraçado
amigo, se
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bolsa retinem festivamente as libras – moeda tão falaz no nosso Portugal
– na tua alma nenhuma aurora se levanta! A abundância enervou-te e
precisas, para a ressurreição, de largos e trabalhosos anos de
penitência, numa romaria libertadora, ao templo augusto da fé. Podes ter
ainda uma sossegada velhice, em que o teu desdenhoso e frio lábio, em
vez de negações que exaurem o sentimento, faça cintilantes revelações de
verdade. Eu ofereço-te três formas de felicidade: – a que resulta da
vaidade satisfeita, a que se ilumina nos êxtases do amor e a que deriva
da candura e da tranquilidade da consciência.
Conheço um pobre e pitoresco homem que
tem passado a vida a traduzir e a copiar, sem relevo artístico, um
escritor francês e que, por isso mesmo, se julga superior. Deste juízo
veio-lhe uma insuportável maneira de levantar a cabeça, de cruzar os
braços, de discutir os outros, o que o torna grotesco. Começou por
espalhar – traduzindo abominavelmente – que tinha ideias inéditas sobre
arte. A princípio todos lhe pediram, com respeito, com veneração, que
divulgasse essas ideias em proveito da civilização, visto que elas
actuariam nas almas com a sedução indizível da beleza: os seus
admiradores passaram, depois dos pedidos veneráveis, às exigências
brutais, lembraram-lhe o dever cívico – e ameaçaram-no com uma bengala.
Ele, porém, jamais deu ao seu país, à Europa, ao globo, essas
maravilhosas ideias, e toda a gente principiou a escarnecê-lo,
reconhecendo a impotência das suas faculdades intelectuais e estéticas.
E vê tu, meu amigo! Esse inútil é feliz, é inenarravelmente feliz, pela
elevada opinião que forma do seu ilusório valor! Não será para invejar
uma felicidade desta ordem?
A felicidade dos amorosos e dos justos
tem, no entanto, raízes mais fundas na realidade moral do universo. Há
homens de alta capacidade e lucidez penetrante que se exilam na
deleitosa doçura do seu ermo, com uma bela e subtil mulher que os
compreenda e que baste à sua ambição de sonhadores – espreitando
medrosamente a rua através dos cortinados da sua janela. E estes
exilados ofertam quotidianamente um exemplo fecundo aos temperamentos
fracos e angustiados, porque demonstram que a pacificação, nos ruídos e
nos egoísmos da existência, é bem possível. Porque os não imitas?
Eis o conselho que te dou, e eis o que
a minha experiencia deseja confessar ao teu gelado pessimismo. Deves
combater, ter uma crença inabalável em ti próprio, amar puramente,
desprezar a tua fortuna e reagir. Se quiseres, entrega-me essa fortuna
com todas as comodidades que ela garante, porque eu sou já um iniciado.
JOÃO GRAVE
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