– A minha neta, sozinha e amuada! Lágrimas! O que aconteceu?

– Nada, avozinha.

– Doente?

– Não estou doente.

– O que foi? Assustas-me.

– Não se assuste, avozinha. Não se assuste, que não foi nada.

– Enganas-me. Tiveste desgosto.

– Lá isso tive.

– Bem me dizia o coração.

– Mas foi pequenino, muito pequenino.

– Sim? Anda cá. Senta-te, ao pé de mim, e conta-me as tuas mágoas.

– O mano… O mano é mau. Pedi-lhe com tão bons modos...

– O quê?

– Que brincasse comigo.

– E ele não esteve pelos autos!

– Que eu era do tamanho de uma boneca, e que rapazes não brincam com bonecas. Ainda se eu fosse um cavalo...

– Ah! Ah! Ah! E tu o que lhe respondeste?

– Chamei-lhe doutor... de calção e perna à vela.

– Depois?

– Depois… Sou uma infeliz que não tenho ninguém que brinque comigo.

– A menina falta à verdade.

– Não falto.

– Falta.

– Então, quem tenho que brinque comigo?

– E eu não sou gente?

– O que quer dizer?

– Que vou eu brincar contigo.

– A avozinha! A avó é muito...

– Velha?

– Não queria dizer isso.

– Então?

– Que a avó é...

– É.

– Muito, avozinha, ora aí está.

– E muito sua amiga. Por isso, avó e neta vão brincar, como se fossem da mesma idade.

– Duas avozinhas?

– Da tua idade, magana, que te devoro com beijos.

– É uma boa partida ao mano, para que veja que não preciso de Sua Ex.ª. Vou buscar a boneca.

– Vai, minha andorinha. Não corras tanto. Não a encontras? Sim, não a encontrarás. Ora, espera. Se eu me escondesse...

*

*       *

– Avozinha! Avozinha! Não sei da boneca. Olá! Onde se meteu a avozinha? Nem avó nem boneca, ambas perdidas.

– lh!...

– Ah! Ah! Ah! O jogo das escondidas!

A avozinha é mais engraçada que o mauzão do mano.

– lh!... já!

- Eu vou achar. Ali... Ah! Não...

Frio ou quente?

– Frio!...

- Atrás do sofá… Não. Escondida no reposteiro... Também não.

– Frio! Frio!

– Neste quarto. Mau, Maria! Aqui, na janela, não está. Assim, não vale. Deixá-lo. Vou para o piano. O bocadinho de que a avozinha gosta tanto.

– Bravo! Bravo! Muito bem!

– Ai! Que tonta! A avozinha escondeu-se / 371 / por detrás do piano e não me lembrou... Ah! Ah! Ah!

– Pensavas que a avó, por ser já muito avozinha, era incapaz de brincar? Engano teu. Vê agora se me apanhas.

– Ai! Que engraçadinha avó! Apanho, sim. Lá me fugiu. Agora agarro-a.

– Não me apanhas, não.

– Pudera... a trocar-me as voltas.

– Duas vezes somos criança.

– Ah! Que se escapou por detrás do piano. Não se canse assim, avó. Cá lhe seguro o vestido.

– Ah! marota!

– Valha-me Deus! Que lá caiu a avozinha!

– Tropecei...

– No vestido?

– Ai! A minha perna!

– Jesus! Avozinha da minha alma!

– Não te assustes, isto passa.

– A avozinha magoou-se. Por minha culpa!

– A culpada fui eu. Meti-me em folias...

– Sou muito má, mais má que o mano. Não devia deixar a avozinha brincar. Dói?

– Um pouco, a perna esquerda; mas não passa de susto.

– Vou buscar água.

– As lindas festas, que me fizeste, são suficientes para a cura. Aí vem já a minha enfermeira com a água.

– Ande, beba uma gotinha. Agora vamos a levantar.

– Ai!... Não posso.

– Dói, dói muito?

– Isto foi obra de jeito que dei.

– Eu seguro-a, por debaixo dos braços. Upa!

– Não posso, amorzinho, não posso.

– Vá lá. Upa acima! Que eu dou um chi coração!

– A avó é pesada demais para as tuas pequeninas forças. Ai!

– Vou chamar o mano.

– Para quê?

– Para ajudar.

– Estás de mal com ele.

– Não importa. É para seu castigo. Verá o resultado de não querer brincar comigo.

– Auxilio a tua vingança. Vai chamá-lo.

– Vou já. A minha boa avozinha. Se não fosse o mano...

*

*       *

– Como ela vai aflita, por amor de mim. Eu posso levantar-me, mas desejo ver até onde chegam os carinhos da pequena. Oh! Já de volta. E de olhos baixos, toda triste e comovida. Querem ver que o mano se recusou a acompanhar-te.

– Terei forças para levantar sozinha a avó!

– Afogas-me com beijos. Não se aflija o meu amor. Eu posso erguer-me. Vês? Foi mesmo sem custo.

– Ainda bem! Até tenho vontade de pular. Em todo o caso, se à avozinha lhe dói, eu dou uma fricção na perna.

– Inverteram-se os papéis. Tu é que és a avozinha, e eu a tua neta.

– Tal qual. Vou ver se encontro a boneca para distrair a minha querida neta.

– Espera aí, avozinha. Não sais sem me contares o que se passou com o teu irmãozito.

– Cheguei-me ao pé dele para dizer... Eu ia muito branca, não é verdade, avozinha ?

– Foi do susto de me veres caída no chão. Mas o que há de comum?

– Há que o mano principiou a gritar, muito enfiado: «Tens alguma coisa? Estás doentinha?» E deu-me beijos! E fez-me festas!

– Então o que é isso? Vais chorar?

– É que eu sou má como as cobras! O mano tão meu amiguinho! E eu zangada com ele.

– Depois o que fizeste?

– Não disse ao mano que a avozinha tinha caído. Coitadinho! Ficava numa aflição, que ele é um anjo!

– Possuis um belo coração. Nem te ralho, como era minha tenção, pelas tuas ideias vingativas. Vou pregar um sermão de lágrimas de alegria ao mano, e trazer-te a boneca, que eu bem sei onde ela pousa.

*

*       *

-Estou contente que nem um rato, ou antes uma ratinha. O mano é meu amigo, a avó é minha amiga, o pai e a mãezinha são meus amigos. Que data de amigos! E / 372 / a avó a correr? Tem graça, que nem uma cabaça. E a jogar o jogo das escondidas! Espera, que também me vou esconder. Há-de ser no mesmo sítio, por detrás do piano. Assim, não desconfiará. Pronto!

– Aqui tens o prémio de possuíres um coração de ouro. Onde estás?

– Ih!...

– O jogo das escondidas, como ainda agora. Os papéis é que estão trocados. Veremos se imito a minha pequerrucha. Onde se meteu a minha avozinha?

– Ih! Já!

– Aqui à esquerda? Não. Ali à direita? Também não. Frio ou quente?

– Frio!... Frio!...

– Na janela? Atrás do reposteiro? Assim não vale. Deixá-lo. Vou para o piano.

O bocadinho de que a avó gosta tanto...

– Bravo! Bravo! Bravo! Ah! Ah! Ah!

– A meus braços, amorzinho! E aqui tens muitos beijos e esta lembrança.

– Que linda! Por isso a avó tinha escondido a outra boneca. É mesmo muito linda.

– Estás contente?

– Estou. Mas...

– Temos um mas.

– Sim.

– Mas quê?

– Mas o mano não teve nenhum bonito?

– Um cavalo de papelão.

– A avó é uma santinha. Um cavalo de papelão!

– Era do que ele mais gostava para brincar…

– Mais do que comigo... Sou uma boneca!

– Ainda se fosses um cavalo...

– Ah!

– Fora com esse restosinho de despeito.

– Eu gosto muito do mano...

– E o mano muito da menina. Olha. Deixou o cavalo e vem brincar contigo.

– É verdade!... Eduardo! Eduardo da minha alma! Deixa-me saltar-te ao pescoço!

RANGEL DE LIMA JÚNIOR
 

 

01-11-2020