Victor Hugo e «Os

Miseráveis»

Uma carta do grande poeta, explicando as suas intenções e o alcance social do seu romance

 A carta que publicamos de Victor Hugo é de uma versão manuscrita em italiano, provavelmente feita pelo secretario de Victor Hugo, e foi escrita em resposta a uma pergunta do Conde Victor A. Pepe, sobre o intento de Hugo ao elaborar o seu grande romance. A carta, com a assinatura do autor, foi fornecida à revista anglo-americana «The Century Magazine» pela condessa Rozwadowska, filha do destinatário.

Não se encontra na correspondência de Hugo, e por isso considerava-se inédita até à publicação recente pelo «Century», de onde a vertemos. Tem interesse especial pelas referências a problemas sociais da actualidade, embora as condições gerais da Itália hajam assumido mais favorável aspecto do que na data em que a carta foi escrita.

 
«Hauteville House, 18 de Outubro de 1862.

Tem toda a razão, quando diz que Os Miseráveis é livro para todos os povos. Ignoro se por todos será lido, mas o que é certo é que para todos o compus. Dirige-se tanto à Inglaterra como à Espanha, tanto à Itália como à França, igualmente à Alemanha e à Irlanda, às repúblicas que têm escravos assim como aos impérios que têm servos. Os problemas sociais transpõem as fronteiras; as chagas da raça humana – chagas imensas que cobrem o globo – não se detêm nas linhas azuis ou vermelhas traçadas no mapa. Onde quer que o homem jaza na ignorância ou no desespero, onde quer que a mulher se venda por pão, onde quer que uma criança sofra à míngua de livro onde aprenda e de lareira que o aqueça, o livro Os Miseráveis bate à porta, dizendo: «Abri! Aqui me tendes. Para vós me destino.»

Na fase – tão obscura ainda – de civilização em que nos achamos, o nome do miserável é Homem: em todos os climas ele sofre; em todas as línguas se lastima.

A vossa Itália não é mais isenta de mal do que a nossa França: a vossa maravilhosa Itália suporta no seu próprio solo toda a espécie de miséria. Acaso o bandoleirismo, que é uma forma insana do pauperismo, não reside nas vossas serras? Poucas são as nações tão profundamente corroídas como a Itália pela úlcera dos conventos, a qual eu tentei sondar. É certo que possuis Roma, Milão, Palermo, Turim, Siena, Pisa, Mântua, Bolonha, Ferrara, Génova, Veneza, uma história heróica, ruínas sublimes, sumptuosos monumentos, soberbas cidades, mas sois tão pobres como nós: tendes à farta maravilhas e podridão. O sol da Itália é indubitavelmente esplêndido, mas, ai de nós! O azul do céu não tira os andrajos ao homem!

Como nós, tendes vós preconceitos, / 355 / superstições, tiranias, fanatismos, e leis cegas que servem de esteio a costumes ignorantes. Nada saboreais do presente e do futuro que não se lhe misture um travo do passado; e tendes no vosso seio um bárbaro – o monge, e um selvagem – o lazzarone. A questão social é idêntica para nós e para vós. A vossa população morre um pouco menos de fome, e um pouco mais de lebre; a vossa higiene não se avantaja muito à nossa; as nuvens tenebrosas, que na Inglaterra são protestantes, são católicas na Itália, mas, sob nomes diferentes, o vescovo é análogo ao bishop, e o obscurantismo é quase da mesma espécie. A errada interpretação da Bíblia importa tanto como o falso entendimento dos Evangelhos.

Devo prosseguir? Devo demonstrar mais cabalmente o lutuoso paralelismo? Acaso não tendes indigentes? Olhai para baixo. Acaso não tendes parasitas? Olhai para cima. Por ventura aos vossos olhos, como aos nossos, não oscila a odiosa balança em cujos dois pratos tão tristemente procuram equilíbrio o pauperismo e o parasitismo?

Onde está o vosso exército de mestres-escola, único que a civilização reconhece? Onde as vossas escolas livres, obrigatórias? Dar-se-á caso que toda a gente saiba ler na terra de Dante e de Miguel Ângelo? Já transformastes vossos quartéis em pritaneios? Não tendes, como nós, um orçamento militar exorbitante e uma verba ridícula para a educação? Não tendes também essa obediência passiva com que se fabrica uma soldadesca brutal? Não tendes um militarismo que obedece à disciplina até ao ponto de fazer fogo sobre Garibaldi – que o mesmo é que disparar sobre a honra viva da Itália?

Examinemos a vossa organização social; tomemo-la tal qual é exactamente, e revelemos a sua iniquidade flagrante: mostrai-me vossas mulheres e vossas crianças. É pela soma de protecção concedida a essas criaturas débeis que nós medimos o grau de civilização. Dar-se-á acaso que a prostituição seja menos deplorável em Nápoles do que em Paris? Que património de verdade se contem nas vossas leis, que quantidade de justiça emana de vossos tribunais? Tendes por ventura a dita de não conhecer a significação destas palavras sombrias – vingança pública, infâmia legal, galés, cadafalso, algoz, pena de morte? Italianos! É morto Beccaria, e vive entre vós Farinacio, como entre nós. E depois observemos o vosso regime de Estado. Tendes acaso um governo que compreenda a identidade da moral e da politica? Estais a pique de amnistiar vossos heróis? Até em França algo se fez de parecido. E agora, passemos em revista as misérias, tragam todos para aqui o seu fardo: vede, sois tão ricos como nós! Pois, como nós, não tendes também duas condenações: a religiosa, pronunciada pelo padre, e a social, decretada pelo juiz? Ó grande povo da Itália, como te assemelhas ao grande povo da França! Sim, meus irmãos, como nós, vós sois miseráveis.

Das profundezas de treva em que mergulhamos todos, não descortinais mais nitidamente do que nós as paragens esplêndidas e remotas do Éden. Além disso, os padres enganam-se ao sustentar que essas paragens ficam nas nossas costas, quando elas, pelo contrário, estão em frente, de nós.

Resumo o que disse. Este livro dos Miseráveis é um espelho das nossas condições, assim como das vossas. Homens e castas há que contra ele se revoltam, e a razão entendo-a eu: os espelhos dizem a verdade, e por isso são abominados; mas nem por isso deixam de ser úteis.

Quanto a mim, para todos escrevo; com profundo amor pelo meu país, mas sem me preocupar pela França mais do que por qualquer outro povo. Pouco a pouco, ao passo que vou avançando na vida, mais simples me torno, e mais e mais me vou fazendo o patriota da humanidade.

É essa aliás a tendência da nossa época, a lei do desenvolvimento da Revolução Francesa; e, para que correspondam à expansão perpétua da civilização, os livros devem cessar de ser exclusivamente franceses, italianos, alemães, espanhóis, ingleses, para se tornarem europeus, ou, mais ainda, humanos. Daí uma nova lógica de arte e certas necessidades de composição, que tudo modificam, até as condições – tão acanhadas no passado – de gosto e de linguagem, as quais, como tudo mais, devem ser presentemente ampliadas.

Censuraram-me alguns críticos franceses, com grande júbilo meu, por me acharem fora do que eles chamam o gosto francês; quem me dera que o elogio fosse merecido!

/ 356 / Em suma, faço o que posso: sofro da dor universal, e procuro atenuá-la; e, dispondo apenas da mísera força de um homem, a todos brado: Auxiliai-me!

Eis o que a sua carta me impeliu a dizer-lhe; e à sua pátria o digo igualmente. Se tanto me alonguei, foi por causa desta frase sua: «Italianos há que afirmam ser francês este livro Os Miseráveis e nada ter connosco. Que os franceses o leiam como história; nós, pelo contrário, leiamo-lo como romance.» Mal de nós! Repito, quer italianos quer franceses, a todos nos importa a miséria. Desde que começou a escrever-se a História e a meditar-se a Filosofia, a miséria é o revestimento da raça humana: oxalá chegue finalmente o momento de rasgar esses andrajos, e de substituir no corpo do Homem-Povo os amaldiçoados remendos do pretérito pelo grande manto purpúreo da Aurora!

Se julga esta carta de utilidade para iluminar quaisquer espíritos e para dissipar quaisquer preconceitos, pode publicá-la. Rogo-lhe aceite esta nova segurança dos meus sentimentos de consideração.
 

 

30-10-2020