/ SERÕES N.º 14 – FOL. 2 /
E
os poetas malbaratam, por vezes, adjectivos encomiásticos; se pecam por
imerecidos louvores e exageros do seu estro; não é certamente quando se
referem com entusiasmo ao mavioso cantor das noites luarentas. Quem
ouviu uma só vez os gorjeios de um rouxinol, convence-se de que é ele o
rei dos cantores alados; pouca gente, porém, conhece as melodias desse
vocalizador extraordinário: uns, porque o confundem com a toutinegra,
outros, porque não ouviram nunca um verdadeiro artista.
Os
Carusos e os Tamagnos são quase tão raros entre os rouxinóis, como entre
os homens.
O
rouxinol não só leva de vencida os outros pássaros na variedade do
canto, mas também na qualidade da voz.
Há
canários, por exemplo, (e sobre todos umas especialidades alemãs) que
executam prodígios de vocalização; esses trinados, todavia, não têm
vida, são frios, não vibram na alma. Só o rouxinol sabe gemer e soluçar,
só o rouxinol consegue comover-nos, só essa maravilhosa avezinha nos dá
a ilusão de ouvirmos outra criatura humana que chora e padece. O canário
causa-nos admiração; mas quando cessou o canto, acabou-se também o
encanto. O rouxinol, não. Quando a sua voz quente e maviosa deixou de
modular as variadas estrofes do seu opulento reportório, a nossa alma
conserva-se ainda por longo espaço sob o domínio daquela fascinação. O
canário é um soprano ligeiro; o rouxinol é um soprano, ou antes um meio
soprano dramático, cheio de expressão e sentimento.
Como
é de prever, todos os amadores de pássaros desejariam possuir um desses
adoráveis cantores, e muito se tem escrito sobre a maneira de os
conservar em gaiola. Os livros, porém, nem sempre são redigidos por quem
conheça o assunto de experiência própria, copiam, em regra, uns dos
outros, sem critério, e expõem processos de cómoda e eficaz execução tão
somente em determinados países. Vou portanto ensinar aos leitores – e
especialmente as leitoras, – dos Serões, como levei a cabo conservar
rouxinóis engaiolados durante longo período, sempre no gozo de óptima
saúde, alegres e cantando, pelo menos, 6 meses do ano. A época lírica
para estes cantores, na vida em liberdade, começa quando termina a de S.
Carlos, onde V.as Ex.as exibiram as suas
elegantíssimas toilettes, isto é, em princípio de Abril; e
termina em meados de Junho. É raro preceder aquela data ou exceder esta.
Alguns também cantam em Outubro. Os rouxinóis cativos começam os seus
concertos em Novembro ou Dezembro,
/
106 / e só os terminam em Junho, como os
livres, quando vem a muda da pena. Antes de Abril, porém, que é para
eles o inicio da quadra dos amores, a voz é pouco volumosa e são pouco
assíduos no cantar. Um rouxinol distinto, no período em que procura
noiva e durante a lua de mel, faz vibrar a sua voz encantadora duas e
três horas consecutivas, sem pensar sequer em alimentar-se. Tive um,
durante doze anos, que ainda poucos meses antes de morrer começava o seu
concerto nocturno, em Maio, entre as 8 e 9 horas da noite, e só à meia
noite se calava, quando não prolongava a serenata até à uma hora da
manhã, sem que por isso deixasse de cantar algumas horas no decurso do
dia. Era um Caruso minúsculo!
Um
dos fins das instruções que vou fornecer aos leitores dos Serões é pôr
cobro às barbaridades de que são vítimas estas pobres avezinhas, presas
por inexperientes, evitando também que se tornem raras. A ignorância
chega à barbaridade, inqualificável e digna do mais severo correctivo,
de privá-las da vista, na inepta suposição que só canta engaiolado o
rouxinol cego.
Até
já vi quem os quisesse alimentar com alpista, como aos granívoros!
Contou-me um selvagem que apanhou uma ocasião 27 (vinte e sete!)
rouxinóis, dos quais apenas um viveu poucos meles Encerrou-os todos num
grande viveiro, deitou-lhes carne de vaca picada, e esperou os
acontecimentos!
Um
amador deve contentar-se com dois pássaros de boa qualidade; porque,
tratando-os conforme vou ensinar, só decorridos muitos anos passará pelo
desgosto de vê-los morrer de morte natural.
Li
algures que o rouxinol velho perde o canto. A minha experiência
desmentiu tal asserto. O indispensável, porém, é não poupar cuidados ao
prisioneiro. Merece-os todos. Se o progresso nos ensinou a suavizar o
cativeiro aos criminosos, com sobejas razões nos cumpre usar igual
caridade para com estes encarcerados, cujo único delito é rivalizarem
com o mavioso filho de ApoIo e de Calíope.
Comecemos, pois, pela habitação do nosso cantor.
Opinam alguns entendidos que o rouxinol canta mais assiduamente em
gaiola de exíguas dimensões, e a minha probidade manda-me corroborar,
até certo ponto, aquela afirmativa. O coração, todavia, nunca me
consentiu o que, porventura, não será crueldade, mas que a nossos olhos
o parece. Demais, a longa prática demonstrou-me cabalmente que se
consegue o desejado fim em cárcere mais amplo, onde por certo a
existência do cativo se prolonga.
As
minhas gaiolas têm 60 centímetros de comprido, por 23 de largo e 39 de
alto. As grades são de junco grosso, passado em buracos abertos em
travessas de carvalho, à distância de 17 milímetros uns dos outros, dos
ditos orifícios; estes têm 4 milímetros de diâmetro; à falta de juncos,
podem-se empregar cilindros de carvalho ou outra madeira
/
107 / escura, resistente, e até, em último
extremo, arame estanhado; mas nesta hipótese, é necessário unir mais os
furos. O fundo da gaiola pode ser de rede metálica, ou de madeira, mas
sempre coberto com dois tabuleiros de zinco (um só tabuleiro em toda a
extensão da gaiola também é admissível), cujos cantos convém soldar
perfeitamente para evitar que molhe o sobrado a água espalhada pelo
rouxinol quando se banha. O tecto, qualquer que seja o feitio da gaiola,
há-de ser sempre de pano, porque até os pássaros já mansos costumam, em
certas ocasiões, voar contra aquela parte da prisão, onde contundiriam
gravemente o crânio se o choque não fosse recebido por um corpo macio e
elástico. Os dois lados estreitos são fechados por tábuas delgadas,
pintadas de verde escuro ou cor de nogueira, com uma abertura de 17
centímetros de largo por 21 de alto, onde entram as guaritas giratórias,
semelhantes a metade de um cilindro oco, cortado na direcção do eixo.
Uma porta larga, na frente da gaiola, permite a introdução da mão quando
seja indispensável. O material empregado na construção destas guaritas
giratórias é o zinco, furado no terço superior a fim de dar entrada a
algum ar e luz; só o tecto é feito de madeira rija, onde se prega o
zinco com balmázios de latão. As guaritas giram sobre dois eixos: um, na
base, soldado no zinco, e que entra na tábua da gaiola; outro que
penetra na parte superior, partindo de um taco grudado na mesma tábua.
Esta disposição permite que se sirva ao cativo a água e a comida sem
necessidade de introduzir a mão na gaiola, manobra unicamente necessária
em casos muito excepcionais, e convenientíssimo evitar, quanto possível,
pelo susto que causa ao animalzinho.
O
rouxinol bebe pouco, mas banha-se muito, mormente na primavera e no
verão. A falta de uma ablução diária é, em regra, sintoma de incómodo
físico. Não se presuma porém que se trata de um banho a medo, de uma
lavagem de gato, como presenciamos na maioria dos pássaros granívoros. O
rouxinol, como todos os insectívoros, mete-se inteiro na água, agita as
asas com ímpeto, e molha-se a ponto de não poder voar nos primeiros
minutos. É, pois, indispensável fornecer-lhe água fresca todas as
manhãs, (e mesmo duas vezes ao dia quando haja calor intenso), e em
vasilha onde o banhista caiba à vontade. Uso, para os meus, uns
tachinhos de barro vidrados por dentro, com 13 centímetros de diâmetro
na boca; os pássaros preferem esta banheira rústica. A comida, que,
assim como os bichos, é servida na outra guarita, deita-se sempre em
vasilhas de porcelana ou de vidro. As caixinhas que do estrangeiro
trazem cold-creams e cosméticos análogos para uso das
senhoras, servem perfeitamente, com tanto que não cheirem a ranço nem a
perfumes. Banheira e prato para a comida precisam de ser bem lavados
todos os dias em água limpa, e enxutos com pano.
Para
servir os bichos, é também necessária uma vasilha de loiça vidrada, a
fim de lhes frustrar todos os esforços para a ambicionada fuga. Convém
verificar de visu que é realmente baldada qualquer tentativa de
evasão; aliás os bichos, em lugar de darem entrada no papo do cantor,
davam às de Vila Diogo, deixando-o à fome.
Os
passarinheiros, quando vão armar ao visco, levam esta substância nuns
vasinhos de loiça vidrada a que chamam visqueiros, aos quais eu dou a
aplicação acima referida. Não há bicho que logre evadir-se de um
visqueiro.
Estas
nicas, que a muitos parecerão exageradas,
/
108 / são o preço por que se paga o prazer
de um concerto de canto, inimitável. Creiam que ainda é barato. Quem não
tiver paciência para o sacrifício, – de resto muito menos pesado do que
à primeira vista se nos afigura – desista da companhia desses
virtuosi, que só rodeados de tantos desvelos e atenções gozam saúde
e vivem largos anos absolvendo-nos do egoísmo de que os tornámos
vítimas.
Além
dos objectos já descritos, precisamos mais para a gaiola: três poleiros
de cana, vime com a casca, ou ramo de árvore direito,
da
grossura do dedo mínimo, e uma cortina de paninho verde que tape toda a
frente da gaiola. Os poleiros colocam-se, dois na travessa de baixo e um
na de cima.
Alguns rouxinóis não cantam com a gaiola destapada; outros querem-na
tapada até meio, ou completamente. Só com experiências se consegue
descobrir o gosto do nosso prisioneiro.
Tratemos agora da alimentado artificial, que há-de substituir as larvas,
os ovos de formigas, as moscas, abelhas, e inúmeros insectos que o
rouxinol devora em liberdade, mas que não lhe podemos oferecer no
cativeiro.
Nas
principais cidades da Alemanha e em muitas outras por esse mundo de
Cristo, onde abundam amadores de pássaros, há casas importantes cujo
comércio consiste em bichos de peneiro, ovos de formiga, e várias
comidas artificiais para insectívoros. Ainda não chegou cá esse
progresso; portanto, temos que ser os cozinheiros dos nossos cantores.
Bichos de peneiro, encontram-se à venda na Praça da Figueira, mas em
pequeno número e caríssimos. Ensinarei também o modo de obtê-los em
abundância e com pouca despesa.
A
comida que tenho visto mais empregada pelos amadores. portugueses é o
coração ou a carne de vaca, picado e misturados com farinha de grão.
O
pássaro come esta mistura, mas vive pouco. Depois de várias
experiências, cheguei à conclusão que nenhuma fórmula é superior à
seguinte: farinha de milho amarela feita num bolo com água a ferver que
se lhe deita em cima; cenoura francesa (a cenoura comprida não é tão
boa), crua, ralada num ralador de folha; e coração cru, de vaca, picado
muito fino, ou carne crua sem gordura, igualmente picada. A carne ou o
coração raspados não prestam. Uma condição indispensável, – note-se bem
indispensável, – é ser uma ou outra coisa perfeitamente fresca, sem
cheiro a azedo nem a podre, nem ao que os cortadores chamam morrinha.
Começa-se por escaldar a farinha, que arrefece enquanto se pica o
coração ou a carne, e se rala a cenoura. Depois de tudo pronto, toma-se
uma parte (em volume) do bolo da farinha, uma de cenoura ralada, e duas
de carne ou coração picado (o coração é preferível à carne) e mistura-se
tudo, continuando a picar e juntando-lhe alguma água a fim de
conseguirmos uma massa mole, mas não muito. É mister que o rouxinol
possa apanhá-la com o bico, aos bocadinhos; portanto, antes dura de mais
do que em papas. Esta comida deve ser feita fresca todos os dias.
A que porventura sobeje da véspera deita-se fora.
(1)
Quando haja impossibilidade de obter carne
/
109 / ou coração fresco, coze-se um ovo,
pica-se clara e gema juntas até ficarem em bocadinhos do tamanho de
grãos de trigo, e serve-se ao pássaro na caixinha de porcelana. Mesmo no
caso de não falhar o coração, convém dar ovo pelo menos uma vez na
semana. Não há o mínimo inconveniente em dá-lo dois ou três dias
seguidos, com tanto que não faltem os bichos de peneiro, que passo a
apresentar a V.as Ex.as.
O
bicho de peneiro é a larva do tenebrio molitor de Lineu,
pertencente ao grupo dos heterómetros, família dos tenebriões.
O
insecto, semelhante a uma carocha, sai branco da crisálida, mas logo se
torna escuro, até ficar quase negro.
Já
conheci dois amadores que, vendo aqueles insectos nas panelas de barro
onde guardavam os bichos de peneiro, os destruíram na convicção de que
eram baratas, mal cuidando que dos ovos postos por eles sairia a futura
colheita de bichos.
Os
maiores tenebriões atingem 15 milímetros de comprido. As larvas, a mais
tentadora gulodice para um rouxinol e outros insectívoros, são de forma
cilíndrica, lisas, cor de grão quando criadas em casa, têm seis pernas
junto da cabeça e dois esporões pouco salientes na extremidade oposta. O
tamanho regular é 3 centímetros; algumas atingem 4. – Antigamente,
quando os padeiros, – perdão! – os operários manipuladores de pão, –
compravam a farinha em rama e a coavam nos seus peneiros, ficavam ali
depositadas as larvas dos tenebriões, e daí lhes veio por certo o seu
nome popular.
Nos
antigos moinhos de vento, apareciam também muitos; nas fábricas de
moagem modernas não é raro encontrá-los, e bem assim nas cocheiras, no
depósito das sêmeas. Com cem ou duzentas larvas já se consegue uma boa
criação, porque um tenebrio molitor chega a pôr 400 ovos.
O
leitor, portanto, faz aquisição de um ou dois centos de larvas, compra
uma panela de barro não vidrada, de altura não inferior a 40
centímetros, 3 litros de sêmea superfina e porção igual da grossa, que
reúne e mistura bem, e procura nos seus trapos velhos uns pedaços de
flanela ou de pano de algodão grosso, puído, (panos de cozinha velhos,
por exemplo) que corta em quadrados de cerca de 15 centímetros de lado.
Começa por deitar na panela uma camada de sêmeas com altura de 5
centímetros, coloca-lhe em cima um pedaço de pano, sobre o pano solta a
terça parte das larvas, cobre-as com nova camada de sêmeas igual à
primeira, estende outro pano, nova porção de larvas, e assim
sucessivamente, não enchendo contudo mais que um terço da panela, ou
pouco menos de metade. Remata a operação com dois pedaços de pano, ou um
só, com 30 centímetros de comprido, que dobra pelo meio; as larvas
gostam de insinuar-se na dobra. Sobre este pano deve colocar, de 8 em 8
dias, umas rodelas de cenoura fresca ou uns bocadinhos de pão duro,
molhados em água fria e espremidos. A boca da panela é tapada com um
pano ralo preso por um cordel que a cinge. Sem esta precaução fugiriam
os tenebriões.
Em
fins de Maio, ou em Junho se o tempo vai fresco, notará que as larvas
aparecem imóveis e como que mortas, deitadas sobre o pano. Decorridos
poucos dias, já vê as primeiras crisálidas, e passados mais 11 ou 13,
surgem os primeiros tenebriões, que morrerão
/
110 / daí a 2 meses, (alguns vivem mais,
outros nem tanto) deixando numerosa descendência. Enquanto há tenebriões,
é necessário deitar uma vez por outra pedacinhos de carne crua dentro da
panela, com o cuidado de retirar os sobejos no dia seguinte. Também não
deve faltar o pão húmido, mas sem molhar as sêmeas, que apodreciam
destruindo a criação.
Na
panela destinada à criação, não se revolvem as sêmeas à procura de
bichos para os rouxinóis. Reserva-se outra para este fim exclusivo.
Em
Setembro já há larvas novas de bom tamanho para figurarem na mesa do
nosso artista. As sêmeas estão reduzidas a pó, e torna-se urgente
substituí-las por outras novas, podendo conservar-se os mesmos panos.
No
mês de Agosto é vulgar faltarem os bichos, porque os velhos se
transformaram todos, e as novas larvas ainda não atingiram o tamanho
preciso. Nesta quadra de penúria, – (e mesmo em qualquer outra ocasião),
– o amador carinhoso manda apanhar ou apanha, nas suas excursões pelo
campo, grilos e gafanhotos pequenos, borboletas, abelhas, bichos de
conta, lagartas lisas – (as peludas são nocivas!) – na certeza que
proporcionará ao seu prisioneiro uns momentos de verdadeiro gozo,
apresentando-lhe, vivos, alguns daqueles bicharocos. Até, porventura,
sem sair de casa, poderá deliciá-lo com duas ou três baratas jovens, que
a V. Ex.ª, minha gentil leitora, causarão arrepios de nojo, mas que ao
Tamagno pequenino saberão como nos sabe a nós o melhor foie
gras de Estrasburgo.
Outro
acepipe delicioso para os rouxinóis, e que às vezes os cura de certas
enfermidades, é o ovo (que não é ovo) da formiga ruiva, – formica
rufa de Lineu, – cujos ninhos se encontram especialmente em pinhais
no fim da primavera e princípio do verão.
São
estes ovos o primeiro alimento que aquelas avezinhas ministram aos
filhinhos recém-nascidos, sempre que podem desencantá-los.
Como
se conservam apenas uns 15 dias sem se deteriorarem, os comerciantes
estrangeiros destas especialidades costumam secá-los em estufa.
/ 111 /
Os meus rouxinóis sempre se recusaram a tragar os ovos de formiga neste
estado, ou humedecidos com leite ou cenoura, como se usa na Alemanha.
A
formica rufa é fácil de distinguir pela cor e pelo tamanho. As
operárias medem 4 a 6 milímetros de uma a outra extremidade do corpo, as
fêmeas 9 e meio, e os machos, que são cor de castanha escura, quase
pretos, 11 milímetros.
Há um
processo fácil de colher estes ovos, mas não me permite o espaço
alongar-me em muitos pormenores, mormente neste caso, que trata de
assunto secundário. Os meus rouxinóis passaram sempre optimamente sem
aquele manjar.
Temos
casa e comida para o cantor; segue-se escolher um artista insigne,
capturá-lo, e habituá-lo ao cativeiro e ao novo regime.
Ninguém ignora que o rouxinol é, como a andorinha, uma ave de arribação.
Contaram-me que alguns estabelecem residência no nosso país; mas ignoro
até que ponto seja verdadeira aquela asseveração, de que peço licença
para duvidar. Seja como for, antes dos últimos luares de Março ou dos
primeiros de Abril, nunca vi nem ouvi nenhum rouxinol; e depois dos
meados de Outubro não me parece que se encontre uma dúzia deles em todo
o país. Parece que estes emigrantes só viajam de noite, alumiados pelo
satélite do nosso planeta.
Os
homens chegam quase sempre uns 8 dias antes das senhoras,
excepto os casados, que vêm acompanhados pelas esposas. Sítios onde haja
água corrente, poços com noras, e salgueiros ou arbustos formando sebes
verdejantes, são em geral onde eles estabelecem a sua residência
passageira. A água, especialmente, é atractivo de que não prescindem,
gostando de a ouvir murmurar por entre as pedras, ou despenhar-se de
alto.
Dá-se
com o rouxinol o facto observado nas andorinhas: depois de escolher
poiso, volta lá todos os anos, excepto se durante a sua ausência se
derem grandes transformações, tais como o desaparecimento da verdura ou
da água. O rouxinol não gosta de convivência, nem sequer dos próprios
filhos adultos, assim como se não afasta muito da área limitada
escolhida para a sua residência temporária; mas também não consente aí
mais ninguém, senão a esposa que o acompanhou, ou a que venha a tê-lo,
atraída e seduzida pelo seu canto amoroso.
Em
meados de Abril até princípios de Maio é que os nossos artistas começam
a exibir todos os seus recursos vocais; é a ocasião mais propícia para a
escolha do futuro prisioneiro, tanto mais que, não tendo ainda criado
família, não estranha a perda da liberdade.
Há
quem suponha descobrir vantagem em apanhar os rouxinóis ainda no ninho,
quase implumes, e criá-los em casa. É absurdo.
O
pássaro assim educado pode cantar regularmente se ouvir um mestre no
campo ou mesmo engaiolado; porém nunca será dotado de laringe nem de
saúde tão robusta como os criados pelos pais em liberdade, nem possuirá
voz tão volumosa e viril. Demais, como acima ponderei, nem todos são
bons artistas, e corre-se o risco de perder tempo e trabalho com um
comprimario somenos ou modesto corista.
A
maioria dos pássaros cantores entoa um número muito limitado de
estrofes, que repetem invariavelmente pela mesma ordem. O rouxinol, além
das muitas frases melódicas, nunca as faz ouvir sem modificações.
Nalguns é tal a variedade, que são necessárias três audições seguidas
para lhes conhecermos o reportório completo.
Uma
das mais belas variações é o chamado suspiro, – uma série de ais,
encadeados e prolongando-se às vezes alguns segundos, quase sempre
terminados em crescendo e acelerando. O ouvinte fica extasiado e
comovido
/ 112 /
ao escutar um longo suspiro vibrado por essas gargantas rivais das mais
insignes primas donas.
Outro
dom impagável é o de cantar durante a noite. Nem todos o possuem. Muito
se tem discutido o assunto, aventando-se até que o rouxinol nocturno é
uma variedade especial. Nada posso afirmar baseado em factos
indiscutíveis. Um parente meu possuiu um rouxinol que, poucos meses
depois de encarcerado, começava a cantar à hora do chá, estimulado pelo
ruído das colheres batendo nas chávenas. Dos meus, só um se tornou
nocturno decorridos dez anos de cativeiro, sendo aliás um dos melhores
cantores diurnos que tenho ouvido. Outro, ao cabo de 3 anos de gaiola,
cantou de noite duas semanas, para nunca mais abrir bico senão de dia.
Quase
todos, se não todos, soltam alguns pios durante a noite, mormente na
época em que as fêmeas costumam estar no choco, Não é isso porém o que
se chama cantar. O rouxinol nocturno canta durante a noite, horas
seguidas, e até com a particularidade de gorjear certas estrofes que
nunca lhe ouvimos de dia.
A
maneira mais provável, com quanto bastante incerta, de conseguir um
rouxinol nocturno, seria percorrer de noite, entre as 10 e as 2 da
manhã, os sítios habitados pelos cantores, marcar a árvore onde eles se
empoleiram, e armar aí próximo a costela – (de que adiante falarei)
pouco antes de nascer o sol, com os artifícios de que também instruirei
o leitor. Menos incómodo, porém, é sujeitar-se ao capricho da sorte,
comparecer às 5 horas da manhã em sítios onde conste haver rouxinóis, e
escolher um artista que reúna o maior número de bons predicados, não
esquecendo o suspiro e a voz de meio soprano ou de contralto, muito mais
agradável do que os sopranos.
Pouco
antes do sol surgir no horizonte e quando começam a fulgir os seus raios
matutinos é que os nossos virtuosi cantam com mais afinco,
mostrando todas as suas prendas; logo que é manhã clara descem ao chão à
procura de alimento, e é a melhor ocasião de os apanhar. O rouxinol é o
pássaro menos cauteloso que se conhece, e cai nas armadilhas com extrema
ingenuidade. Eis a razão por que podemos apanhar um qualquer à nossa
escolha. Se porém conseguiu fugir do laço, torna-se desconfiadíssimo e
dificilmente lá volta, por mais tentador que seja o engodo. A estes
matreiros chamam os passarinheiros: pássaros escaldados.
Há
regiões, como por exemplo Caneças, onde se ouvem 20 e 30 cantores, mas
nenhum deles distinto. Em Santarém e em Coimbra há abundância de
rouxinóis, quase todos de boa escola; e mesmo nos arredores de Lisboa se
encontram artistas notáveis. É preciso todavia fazer a caçada onde
existam em abundância, a fim de não exterminar estas avezinhas e privar
os nossos campos de um dos seus mais belos atractivos.
Aconselho aos amadores que apanhem os pássaros por suas próprias mãos ou
que, se por falta de habilidade o não conseguirem
acompanhem o profissional encarregado da caçada, e retirem o rouxinol da
costela por suas próprias mãos, com o máximo cuidado. O passarinheiro de
profissão, (sem ofensa para alguma excepção honrosíssima) prefere que os
cativos vivam o que vivem as rosas, por motivos fáceis de adivinhar.
Comprar-lhes rouxinóis é quase sempre mau negócio.
/
113 / Ao risco de adquirir uma fêmea, pois
não é fácil distinguir os sexos até para os peritos, junta-se a quase
certeza de ser um pássaro estropeado e já portador do gérmen da
enfermidade que lhe abreviará a existência.
O
rouxinol masculino tem a cabeça mais redonda, os olhos maiores, mais
vivos e também mais redondos do que as fêmeas. Ouvindo-os primeiro
cantar, não há perigo de sermos em nenhuma maneira logrados. É esta a
vantagem de apanhá-los na entrada, isto é, em Abril e começo de Maio.
Mas embora ainda cantem neste mês e em Junho, a voz, provavelmente em
resultado do abalo sofrido pelo pássaro quando é colhido na costela,
conserva-se fraca e apagada, e só adquire todo o brilho e força na
primavera.
A
outra época em que os podemos apanhar é próximo da saída, isto é, em
Setembro até aos primeiros dias de Outubro. Neste caso não sabemos ao
certo as qualidades do cantor, se cair na costela um jovem da criação
nova e não o pai, que meses antes ouvíramos.
A
melhor armadilha para rouxinóis é a costela. Compõe-se este aparelho de
três pedaços de arame de ferro cru (rijo) com 3 milímetros de diâmetro,
sendo um recto e dois curvos. Estes medem 57 centímetros de comprimento;
aquele, 28 – Um dos curvos é fixado numa tira de madeira com 29
centímetros de comprido por 4 de largo e 1 e 1/2 de espessura, embebendo
as extremidades, de 2 centímetros, em dois orifícios distantes um do
outro 27 centímetros. O outro arame curvo termina em duas aselhas que
giram no arame recto, servindo-lhes de eixo, e enfiado em 3 pitões
aparafusados na face mais larga da tira de madeira, sendo um ao centro,
e cada um dos restantes a 13 centímetros e 1/2 dele. As aselhas do arco
de ferro devem girar por dentro dos pitões terminais, aliás fugiriam do
eixo. Neste mesmo eixo se enfiam duas molas espirais, de arame rijo, e
que, presas por uma ponta à tábua e pela outra ao arco móvel, o fecham
com violência sobre o fixo.
No
arco fixo cose-se um bocado de pano forte, cuja parte livre se prega na
tira de madeira a fim de fechar completamente o espaço. No móvel,
prende-se uma rede de linha crua, cujas malhas só deixam passar a cabeça
do rouxinol. A rede, para não deixar fugir o preso, deve ser cosida
também ao pano, ou fixada na tira de madeira, mas ficar folgada, a fim
de não apertar o animalzinho. Ao arco móvel, e à distância de 16
centímetros de cada aselha, ata-se, pelas pontas, um cordel de 27
centímetros de comprido, que fica formando um bolso.
Algumas costelas têm a parte fixa feita de madeira ou de grades de
arame. Prefiro o pano porque evita contusões violentas. Tanto o pano
como a rede devem ser tintos cor de terra, com um decocto de
casca de carvalho com um pouco de alúmen.
No
meio da travessa de madeira, formando ângulo recto com ela (e em
direcção oposta ao arco), prega-se uma tira do mesmo material, um pouco
mais estreita, e com uns 20 centímetros de comprido. Esta tira serve
para nela
/ 114 / se
prender, por meio de um cordel, a tranqueta, que é um pauzinho delgado e
liso, de 16 centímetros de comprido, com a extremidade livre talhada em
cunha. Temos mais o bicheiro, que é outro pauzinho de 3 centímetros de
comprido. Numa das extremidades tem um gancho de arame rijo que entra
num piton pequenino cravado ao meio da travessa grande; na outra
prendem-se quatro ou seis arames delgados de ferro flexível, cujas
pontas se curvam em forma de aselha. Nesta mesma parte do bicheiro se
corta um entalhe pouco fundo.
Estas
minúcias são dedicadas ao leitor curioso que deseje fabricar as
armadilhas. Aquele a quem a natureza não dotou de habilidade manual
procede com mais tino dirigindo-se a um arameiro prático neste género de
trabalhos, apresentando-lhe as indicações expostas. Em todo o caso nunca
empregue uma armadilha sem primeiro experimentar se funciona bem,
armando-a e fazendo-a desarmar por meio de um toque muito leve no
bicheiro, com uma palha ou junco ou objecto semelhante.
Para
a nossa caçada precisamos também de um cevadouro. O cevadouro é uma
gaiola rectangular, com 35 centímetros de comprido por 25 de alto e 20
de largo. O fundo e os dois lados mais estreitos são de madeira; o tecto
e os outros dois lados são de pano flexível e pouco tapado. Uma das
paredes de madeira tem uma abertura redonda por onde deve caber a mão
que solta lá dentro o pássaro e o retira quando seja necessário.
Costuma-se fechar esta abertura pregando-lhe em volta um pedaço de manga
de camisola ou o cano de uma meia que, cingindo. se ao braço quando se
introduz a mão no cevadouro, evita a fuga do prisioneiro.
Dentro daquele cárcere provisório, a 5 centímetros de distância do
fundo, e fixo às paredes de pano, coloca-se um poleiro de cana ou de
madeira. No alto das paredes de madeira abre-se uma fila de furos (uns 5
ou 6) onde caiba um lápis, e que são destinados a dar entrada ao ar.
Também se coloca dentro do cevadouro uma vasilhinha de loiça cheia de
água fresca para o rouxinol beber, e que nunca deve faltar. No cevadouro
é que o nosso cantor vai passar os seus primeiros dois dias de
cativeiro.
Vejamos agora como se arma a costela. Começa-se por entalar 4 ou 6
bichos de peneiro nas aselhas dos arames do bicheiro, apertando-as
convenientemente; depois, levanta-se o arco móvel da costela, enfia-se o
gancho do bicheiro no piton que lhe é destinado, faz-se passar a
extremidade livre da tranqueta pelo arco de cordel e através da rede e
prende-se essa extremidade, muito subtilmente, no entalhe do bicheiro à
sombra da árvore onde canta o rouxinol escolhido, cavam-se uns três
palmos quadrados de terra, e com ela se cobre todo o pano e as travessas
de madeira, a fim de desvanecer as suspeitas do artista, que, não
tardando em avistar os bichos em contorções tentadores, precipita-se
sobre eles vorazmente, arrebata-os com uma bicada furiosa, desarma a
costela e lá fica enredado. À falta de bichos de peneiro servem também
grilos, gafanhotos e outros insectos, com tanto que se conservem vivos;
mas nenhuma isca é tão tentadora como a primeira indicada.
É
indispensável retirar o pássaro da costela com a máxima brevidade
porque, se ali se demora, debate-se com tal violência que chega às vezes
a morrer. Para isso é mister estar de olho alerta e visitar a costela
com frequência, especialmente quando o pássaro que se pretende apanhar
deixou de cantar por algum tempo.
O
rouxinol canta geralmente em dois poisos; raro é vê-lo demorar noutros.
Se se deixa ouvir fora dos lugares favoritos, é só de passagem e por
breves instantes. Esta constância ainda mais facilita a caçada,
especialmente se empregarmos mais uma ou duas costelas, armadas junto
das outras árvores onde se observou que o rouxinol costuma cantar.
Se o
pássaro se acha em lugar inacessível, consegue-se atrai-lo ao que nos
convier chamando-o com um assobio agudo e brando imitando o piar das
fêmeas. E ele, coitado, deixa-se iludir tolamente! Sempre a mesma
história desde a nossa mãe Eva.
Apenas se nos depara o pássaro preso na costela, desprende-se-lhe
cautelosamente a cabeça e as penas das asas, que em regra
estão
enfiadas nas malhas da rede, e solta-se o prisioneiro dentro do
cevadouro, onde os bons artistas quase sempre ainda soltam uns trinados.
Na ocasião da caçada não há inconveniente em guardar 2, 3 e 4 pássaros
no mesmo cevadouro; mas, logo que se chega a casa, é mister separá-los
porque, de contrário, não tardariam a ferir encarniçadas lutas de que
poderia resultar a morte.
No
dia da captura e no imediato, serve-se como único alimento uma porção de
bichos
/ 115 / de
peneiro, – 20, 30, e mais, – deitados vivos para dentro do cevadouro,
pelos orifícios abertos nas faces de madeira, 5 ou 6 de cada vez, e de 3
em 3 horas. Por esses mesmos orifícios, levantando o cevadouro de
mansinho, e evitando tudo que possa assustar o cativo, se espreita se
ele está animado e esperto.
Dado
o caso de, na tarde do segundo dia, o pássaro se mostrar triste, e se
conservar imóvel a um canto da prisão, é preferível restituir-lhe a
liberdade. Raro, porém, se dá este desastre. Tenho apanhado muitos
rouxinóis, mas só duas ou três vezes me convenci de que se não
conformavam com o cativeiro e tive de soltá-los, receoso de que
morressem. Nestes casos excepcionais tratava-se de pássaros velhos, o
que se reconhecia pela grossura das pernas. O rouxinol novo tem-nas
muito delgadas e com um tom levemente rosado.
O
nosso prisioneiro jaz há dois dias no cárcere provisório; na manhã do
terceiro podemos passá-lo para a sua habitação definitiva.
Se o
rouxinol é sossegado, se não se debate muito dentro do cevadouro, pode
passar para a gaiola no dia imediato à captura.
A
grande maioria dos pássaros gosta de se expor ao sol; o rouxinol prefere
a sombra. Quando aquele astro começa a dardejar os
seus
raios com maior intensidade, os nossos amiguinhos escondem-se entre a
folhagem. Por este motivo devemos colocá-los em sítio ao abrigo do sol,
não exposto a correntes de ar. A própria gaiola, como vimos, não deve
primar pelo brilho das cores. Também desagradam ao nosso artista as
mudanças de lugar, a ponto de suspender o canto por algum tempo. Um dos
meus emudeceu um ano, amuado com uma dessas mudanças, e só cantou quando
lhe satisfiz o capricho transportando a gaiola para o antigo posto,
menos banhado de luz do que o outro. Seriam, pois, os inquilinos ideais
para os nossos senhorios, tão frequentemente arreliados com o
espectáculo inquietador de escritos nas janelas dos seus prédios em
quase todos os semestres.
Portanto escolha-se a parede onde a gaiola tem de permanecer, e
pendure-se num prego de maneira que se eleve uns 2 metros e 20
centímetros, ou mais, acima do sobrado; ponha-se numa das guaritas o
tachinho com água fresca, no outro a comida artificial à qual se
adicionaram alguns bichos de peneiro cortados em dois bocados, e dois ou
três inteiros, vivos, enterrados na comida; preguem-se as extremidades
da cortina verde nos cantos inferiores da gaiola, de maneira que esta
fique
/ 116 /
completamente tapada; colha-se o rouxinol cautelosamente, e solte-se na
nova casa.
O
pássaro conserva-se uns minutos pasmado e imóvel, mas daí a pouco
saltará para os poleiros, e mal aviste os bichos vivos na comida, não
hesitará em tragá-los. Depois destes, engole com certeza os bocados dos
cadáveres. Daí a uma hora, cravam-se na comida mais três ou quatro
bichos vivos, e repete-se depois a operação com intervalos de duas
horas. O rouxinol engole juntamente com os bichos algumas partículas da
comida, que nestes primeiros dias se deve deixar um pouco mais mole, e
assim se vai habituando a ela, de maneira que ao cabo de 8 dias, o
máximo, já se banqueteia sem haver mister do tempero dos bichos, toma
banho, e começa a cantar, sinal evidente de que se resignou ao novo modo
de vida, e que temos artista. É a ocasião de começar a dar mais luz e ar
à gaiola, levantando gradualmente a cortina com uma dobra na parte
inferior, que de dias a dias se alarga, até ficar descoberta a frente da
prisão. Se o pássaro se cala, ficamos informados de que prefere
ocultar-se, e devemos satisfazer-lhe o desejo. A grande maioria quer a
cortina descida até à altura do poleiro superior, podendo assim
mostrar-se ou esconder-se à vontade. Muitos gostam de cantar no fundo da
gaiola, empoleirados na divisória dos tabuleiros de zinco, por isso me
parece bom atravessar um poleiro naquela altura quando falte a dita
divisória, e mesmo quando ela exista.
A
demora em tomar banho é mau prenúncio. Se o pássaro não se banhou ao
terceiro ou quarto dia de cativeiro, devemos observá-lo por uma fisga da
gaiola sem que ele nos aviste. Se se mostra triste, com as penas mal
cuidadas, os olhos meio cerrados, melhor será soltá-lo e apanhar outro.
Mais uma vez recomendo que não haja economias com os bichos enquanto o
pássaro não come e não se habitua à prisão. Se ele, como às vezes sucede
nos primeiros dias, os não for extrair da comida onde estão cravados,
sirvam-lhos limpos dentro do visqueiro, 4 ou 5 de cada vez, como se
praticava durante a estada no cevadouro. Bichos, comida e água servem-se
sempre, é claro, dentro das guaritas que giram para receber as vasilhas
sem que a mão entre na gaiola e o pássaro veja o seu carcereiro, de quem
conserva recordações rancorosas. Com o tempo tudo esquece, – até nos
rouxinóis o ódio cedo se transforma em simpatia, reconhece-o até pelos
passos e adverte-o com um tac! tac! significativo, de que são horas da
ração de bichos.
Logo
que o rouxinol se costume à comida
/
117 / artificial, estabelece-se o novo
regime alimentar, que será o seguinte: de manhã cedo, dois bichos vivos
dentro do visqueiro; dali a duas horas, a comida de carne ou o ovo
picado, suficiente para o dia inteiro; às 4 horas no Inverno, e às 6 ou
7 no Verão, nova ração de 5 bichos. Quando o pássaro canta assiduamente,
oferecem-se-lhe mais três ou quatro bichos pelo meio do dia; ele mesmo
os vem buscar à mão do dono, às grades da gaiola, quando chegou a um
certo grau de domesticidade.
Há um
processo simples e quase sempre eficaz, para incitar os rouxinóis ao
canto: deixar correr água da torneira do contador para o pote, de
maneira que o artista oiça o ruído, ou esfregar o chão com uma escova de
lavar casas. Este barulho imita, embora imperfeitamente, o murmúrio da
água correndo com certa violência por entre as pedras, ou despenhando-se
sobre elas, recorda aos nossos artistas os recantos poéticos onde
cantavam os seus amores, embalados por aquele brando rumor, e
arranca-lhes saudosos e sentidos gorjeios. A chiadeira prosaica do peixe
no azeite fervente que o frege também produz igual efeito.
Resta-me apontar as precauções necessárias para o Inverno e certos
cuidados que o prisioneiro requer para conservação da saúde.
Os
rouxinóis são muito friorentos; as temperaturas baixas são-lhes até
fatais. Em chegando o mês de Novembro é mister tapar, à noite, a gaiola
com um pano espesso, de lã ou de algodão, que a abranja por todos os
lados, excepto (é óbvio) o que está encostado à parede.
Repito que a gaiola não deve ser removida do seu lugar.
Quando o frio é muito intenso e o pássaro nos parece menos alegre, é boa
prática levar a gaiola, por excepção, para junto de uma janela por onde
entre o sol e o prisioneiro possa expor-se a ele, durante uma hora.
Os
vidros da janela não se abrem. Aquele banho de sol pode repetir-se dois
ou três dias consecutivos. E mais de uma vez no decurso do Inverno, se
supusermos necessário.
O
fastio é incomodo que de tempos a tempos se manifesta nos nossos
amiguinhos. Não os prejudica um meio jejum em um ou dois dias. Se o
pássaro, porém, repele a comida com maior insistência, aumenta-se o
número das rações de bichos, servem-se-lhes alguns dos insectos que
acima mencionei, insiste-se no ovo picado, e dá-se-lhe a beber água das
Pedras Salgadas (sem reclame às ditas águas!) ou outras igualmente
alcalinas. As águas são recurso final, quando os outros falharam todos.
/
118 / Reservei para remate um ponto dos
mais importantes, mas pouco parlamentar; não o posso todavia omitir,
tanto mais que fala agora o médico, que é, para o corpo, o que o
confessor é para a alma. Para com ele, não há refolhos nem pudores.
Recorda-me agora aquele preceptor austero, encarregado de expurgar, para
uso do príncipe confiado à sua direcção pedagógica, uma edição completa
das obras de certo clássico demasiado livre na linguagem. As passagens
escabrosas capazes de ruborizar, ao de leve que fosse, o pudico jovem,
foram implacavelmente suprimidas, porém reunidas todas, em apêndice, no
fim do último volume. O caso agora não é tão feio, minhas senhoras, e
trata-se da saúde, da vida de um entezinho que se nos tornou querido.
Por conseguinte... com licença.
Se a
comida do nosso artista nos merece especiais cuidados, mais especial
atenção exigem as evacuações, que sobre todos os outros sintomas nos
orientam acerca do estado de saúde do cantor. O pássaro cativo,
submetido a um regime tão diferente daquele em que foi criado, é sujeito
nos primeiros meses, e no decurso da sua existência, a irritações e
obstruções intestinais.
As
fezes do animalzinho, no gozo de perfeita saúde, são escuras com uma
parte mínima branca, e expelidas rapidamente, dum jacto, ficando o
pássaro aprumado e tranquilo. Se há qualquer irritação ou prisão dos
intestinos, as fezes são muito brancas, semelhantes a um pingo de cal, e
depois da evacuação, que denuncia algum esforço ou sensação penosa, o
rouxinol continua em movimentos e esforços, como se sentisse necessidade
de expelir mais alguma coisa. Sempre que se note este desarranjo,
deitem-se dois bichos dentro de uma vasilhinha com azeite fino, sem
vestígios de ranço, deixem-se aí ficar uma hora e apresentem-se depois
ao enfermo.
Duas
horas antes, ou mais, retirou-se da gaiola toda a comida, para que o
rouxinol aguilhoado pela fome devore com menos repugnância os bichos
molhados no azeite. Se da primeira vez o resultado foi nulo, repete-se a
receita no dia seguinte. Convém também aumentar, por uns dias, a
quantidade de cenoura adicionada à carne e à farinha de milho. Os ovos
de formiga também são indicados nesta doença e em todas as demais. E
tenho dito o mais essencial e o bastante para V.as Ex.as
se deliciarem com os gorjeios da filomela dos poetas, sem saírem do seu
boudoir perfumado.
Com a
mesma alimentação, porém menos rigorosa porque esses comem também sopas
de leite, figos frescos e secos, consegue-se também engaiolar um
passarinho gracioso e sofrível cantor: o pisco. O canto desta avezinha
tem um tom de melancolia que se não ouve com indiferença. Apanham-se os
piscos com a costela dos rouxinóis e com a mesma isca viva, mas só em
Outubro ou princípios de Novembro, e como eles se habituam à comida
artificial e ao cativeiro.
FREITAS BRANCO
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(1)
– A farinha
de milho pode também ser empregada crua, conforme sai da peneira, mas,
sempre que seja possível, convém escaldá-la conforme indiquei.
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