INTRODUÇÃO
A par com o azulejo, a talha é tida como uma
das expressões mais específicas e criativas da arte
portuguesa. Num tempo em que o entendimento e o estudo da
arte e cultura começam a ser orientados no sentido da sua
portuguesidade e não no da expressão em Portugal das
correntes estilísticas mais ortodoxas, torna-se importante
alargar o espaço e criar tempos de reflexão sobre o que mais
facilmente identifica, inclusive ao nível do grande público,
o passado e o sentir português.
A par com estes novos ventos da
historiografia da arte surge a valorização das expressões
artísticas antes e depreciativamente tidas como menores
e/ou vernaculares. |
Nicho que alberga a
escultura de Nª Srª do Rosário. Desenho de pormenor
situado no tramo vertical da moldura do nicho.
Destaca-se o elemento figurativo – ave e folha de acanto
– entalhado na madeira e policromado. (p. 15) |
Trata-se agora de reconhecer o valor que cada uma assume na
leitura integrada da concepção dos espaços – o que seria o
nosso espaço barroco sem a talha e o azulejo?
O que seria a talha sem a pintura e
a ourivesaria? Como seria a talha sem a racionalista e chã
expressão arquitectónica refinada da tratadística europeia
pelo anacronismo culturalista vigente em Portugal durante a
Idade "Moderna?
Do que atrás foi dito e, principalmente, do que
resumidamente pretende dar lembrança, hoje ninguém dentro da
problemática cultural portuguesa tem dúvidas. Mas é
lamentável que sejam quase inexistentes meios de comunicar aos portugueses, e a quem por esta nação se interessa,
conhecimentos ainda que rudimentares sobre a talha. Por
outro lado, os especialistas lutam com grandes dificuldades
no desenvolvimento do seu trabalho de investigação.
Quando em Novembro de 1992 assumi a responsabilidade pela
colecção de talha do acervo do Museu de Aveiro deparei com
dificuldades a vários níveis: a par com o trabalho de
inventário era também necessário reunir bibliografia
específica sobre talha; era preciso pesquisar e reavaliar
estudos feitos sobre a talha do museu dada a falta de
registos acerca do seu passado e origem; era essencial
criar-se um guia acerca do imenso puzzle que são as
reservas e dotar o museu de meios técnicos humanos e
materiais auxiliares na conservação das peças em exposição e
em reserva.
Foi este o desafio lançado, e é este, por definição (Artº 2º
dos Estatutos do ICOM, 1990), a função do Museu.
Tendo a colecção do Museu de Aveiro items de talha
representativos dos principais períodos da escultura de
madeira portuguesa, com concepções tipológicas
determinantes e formulários escultóricos defini dores de
produção de talha em oficinas regionais de marcenaria,
entendo que o Museu pode ganhar uma nova valência como
espaço dedicado ao
estudo e divulgação pedagógica da talha, podendo articular
esta sua acção dentro e fora de portas, ou seja, do Museu
para a e na
Cidade.
Esta ideia tem antecedentes na criação
do Curso de Conservação da Talha
(F.S.E./C.E.) que funcionou entre 1989 e 1991
e formou alguns técnicos. de restauro que ao longo do curso
deram prova das suas qualidades. Por outro lado a cidade
oferece uma vasta e qualificada panóplia de espaços em que
a talha tem papel preponderante.
Assim tudo se parece conjugar para que
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no Museu de Aveiro venha a ser instalada uma dinâmica de
estudo/ensino, conservação, exposição, divulgação e
sensibilização da sociedade de
e
para a talha a nível nacional.
É dentro deste espírito que se giza o seguinte projecto:
IDEIAS GERAIS PARA UMA 1ª FASE
1.
Inserir no percurso museológico do museu uma área destinada
à interpretação da talha em três momentos/espaços: o
técnico; o
formal; o simbólico.
.
2.
Propor ao público um percurso dentro do museu em que lhe
sejam dados a ver e a entender alguns conjuntos (séries) de
talha de acordo com uma sequência que terá como objectivo a
verificação e rememorização pedagógica dos conteúdos da
secção museológica definida em 1 (a série de retábulos das
capelas do claustro, as séries de retábulos da Igreja de
Jesus, a série de nichos da Capela de Nª Sª da Conceição, a
série da Capela de Nª Sª do Rosário e do Senhor dos Passos,
etc.) e, subsequentemente, a realização de um roteiro para
apresentação geral dos conteúdos aliando-se-lhe a
representação gráfica dos diversos elementos construtivos e compositivos.
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Nicho que alberga o
conjunto escultórico representando Stª Ana
e a Virgem. Desenho de pormenor da pilastra
interrompida por mísula, conhecida como quarteirão/quartelão.
(p. 16) |
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Retábulo de altar.
Dedicado a
Santa Joana Princesa
(p. 16) |
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3.
Sugerir documentadamente ao público um percurso para
visita na Cidade dos 6 núcleos mais coerentes e
significativos: Igrejas de Santo António e da Ordem Terceira
de São Francisco, Igreja das Carmelitas, Igreja da
Misericórdia, Igreja da Nossa Senhora da Apresentação
(Paroquial da Vera Cruz), Igreja do Carmo e Igreja das
Barrocas.
4.
Este projecto não ficará completo sem um programa editorial
específico onde registe
com destaque um catálogo científico para o acervo do Museu,
podendo este servir de guião à catalogação e registo de
outros núcleos na cidade (tarefa a desenvolver numa 2ª
fase).
Desenvolvimento (1ª fase)
1.1
O TÉCNICO
– momento/espaço no qual
são apresentadas as técnicas de execução da talha.
Obviamente será impossível dissociar a técnica das opções
formais do desenho e como tal deverão ser indiciados também
os métodos de concepção. A exposição irá dar ao público a
oportunidade de se familiarizar com os
objectos e de avaliar a qualidade e prática do ofício. Assim
deverão estar patentes os utensílios e as matérias-primas
bem como exemplares em fases de execução diversas, sempre
que possível estabelecendo uma postura inter-activa do
público. Deverá também ser chamada a atenção para o facto de
as técnicas e materiais condicionarem a forma e assim
deverão estar presentes exemplares de finalidade idêntica e
material diverso. Só assim será possível entender a
autonomia formal que a talha adquire com o avanço do tempo
no nosso país, tirando partidos que apenas a madeira
permite.
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1.2 O FORMAL
–
momento/espaço no qual a talha é explicada de acordo com a sua
concepção e identidade formal
(modelos/séries, relações com tratados e estampas, proporções
canónicas, estilo, carácter erudito ou vernacular, etc.).
Orientada para o valor de uso e para a leitura
integrada na concepção do espaço este momento
contextualiza historicamente a talha incluindo e fornecendo
dados sobre a funcionalidade e intencionalidade da sua
produção, a sua ligação com a arquitectura, os seus artistas e
encomendadores, a sociedade das épocas de origem, etc..
Tendo o edifício exemplares de várias épocas e escolas (avulta
a produção de uma hipotética escola local), deverá funcionar
como
referencial pedagógico e suporte factual da exposição.
1.3 O SIMBÓLICO
– momento/espaço no qual da talha é extraído o valor simbólico
da representação figurativa. Esta leitura pretenderá treinar e
sugerir ao observador a descoberta da mensagem que os
elementos iconográficos visam transmitir: religiosidade, poder
político e/ou económico do encomendador; liberdade criativa do
artista, etc.
Poder-se-á também elaborar uma análise comparativa de
formulários com características regionais estimulando a
participação dos públicos de diversas proveniências na
identificação/selecção desses elementos iconográficos.
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2.
A visita deverá ser apoiada por meios modernos e
inter-activos de legendagem que permitam estabelecer
relações com a matéria exposta nos espaços de 1 e
com
exemplos exteriores ao Museu passíveis de avaliação em
termos da sua evolução técnica, formal e iconográfica.
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3.
Para o estabelecimento do percurso de. visita na cidade,
será necessário obter o acordo das entidades responsáveis por
estes núcleos, sendo o museu entendido apenas como entidade de
divulgação e investigação deste património local. O museu
deverá, no entanto, informar e facilitar o acesso aos meios
existentes e disponíveis no campo da investigação,
inventariação, conservação e recuperação.
O apoio dos Serviços Regionais de Aveiro do Instituto da
Juventude será essencial no que diz respeito à colocação de
jovens O.T.L. (projecto de Ocupação dos Tempos Livres) nos
núcleos referidos, ficando à responsabilidade do Museu a
preparação destes jovens para o desempenho das funções
requeridas.
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Retábulo de altar.
Desenho da estrutura,
terminologia e disposição
dos elementos construtivos.
(p. 17) |
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Armário retabular do
Santíssimo Sacramento.
Desenho de pormenor técnico
(p. 17) |
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Com a abertura dos espaços e a constatação do seu valor por
parte dos responsáveis será dado o primeiro passo para a
recuperação deste importante património, bem como de outro
aqui não referido e de valor semelhante.
Observações Finais
Em face da oportunidade criada com a
publicação deste Boletim, pareceu-nos ser este o local e o
momento ideal para a divulgação deste projecto. O objectivo é
o de se criarem dinâmicas de estudo, de conservação e de
valorização da talha dentro e fora do Museu, intervindo-se
também à escala da Cidade.
Ambiciona-se, através do projecto aqui esboçado, criar
empatias na comunidade aveirense no âmbito deste tema;
espera-se, de igual modo, que este conduza a uma especial
sensibilização das entidades responsáveis pelos núcleos de
talha em A veiro, no sentido de promoverem a comparticipação
da população na salvaguarda deste património.
À AMUSA, os nossos mais sinceros parabéns pela iniciativa,
desejando que esta se
transforme num programa editorial com continuidade, onde se
pontue e destaque o trabalho que se vem desenvolvendo nos
vários vectores sócio-culturais que giram em torno deste Museu
e da sua colecção.
Aveiro, 21 de Março de 1999
Maria da Luz
Nolasco Cardoso
BIBLIOGRAFIA
BAZIN, Germain – Morphologie du Retable Portugais. Boletim
da Academia Nacional de Belas Artes.
Lisboa: Academia Nacional de Belas Artes, 1950. p. 18-19.
LAMEIRA, Francisco Ildefonso
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1º
Congresso Internacional do Barroco:
Separata das Actas.
Porto: Reitoria da Universidade do Porto, 1991. voI. I.
ALVES, Natália Marinho Ferreira – A Arte da Talha no Porto
na Época Barroca. voI. II, Porto: Arquivo Histórico da
Câmara Municipal do Porto, 1989.
SMITH, Robert C.
– A Talha em
Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 1962.
– The Portuguese Woodcarved Retable. Boletim da Academia
Nacional de Belas Artes.
2ª ed. Lisboa, 1950.
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A Matriz deste texto é um projecto que foi
apresentado à Direcção do Instituto Português de Museus em
1992.
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