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Maria da Luz Nolasco Cardoso, A Colecção de Talha do Museu de Aveiro. Projecto de valorização da talha. In: "AMUSA", N.º 1, Outubro de 1999, pp. 14-18.


A Colecção de Talha do Museu de Aveiro*
Projecto de valorização da talha
 


INTRODUÇÃO

A par com o azulejo, a talha é tida como uma das expressões mais específicas e criativas da arte portuguesa. Num tempo em que o entendimento e o estudo da arte e cultura começam a ser orientados no sentido da sua portuguesidade e não no da expressão em Portugal das correntes estilísticas mais ortodoxas, torna-se importante alargar o espaço e criar tempos de reflexão sobre o que mais facilmente identifica, inclusive ao nível do grande público, o passado e o sentir português.

A par com estes novos ventos da historiografia da arte surge a valorização das expressões artísticas antes e depreciativamente tidas como menores e/ou vernaculares.

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Nicho que alberga a escultura de Nª Srª do Rosário. Desenho de pormenor situado no tramo vertical da moldura do nicho. Destaca-se o elemento figurativo – ave e folha de acanto – entalhado na madeira e policromado. (p. 15)

Trata-se agora de reconhecer o valor que cada uma assume na leitura integrada da concepção dos espaços – o que seria o nosso espaço barroco sem a talha e o azulejo? O que seria a talha sem a pintura e a ourivesaria? Como seria a talha sem a racionalista e chã expressão arquitectónica refinada da tratadística europeia pelo anacronismo culturalista vigente em Portugal durante a Idade "Moderna?

Do que atrás foi dito e, principalmente, do que resumidamente pretende dar lembrança, hoje ninguém dentro da problemática cultural portuguesa tem dúvidas. Mas é lamentável que sejam quase inexistentes meios de comunicar aos portugueses, e a quem por esta nação se interessa, conhecimentos ainda que rudimentares sobre a talha. Por outro lado, os especialistas lutam com grandes dificuldades no desenvolvimento do seu trabalho de investigação.

Quando em Novembro de 1992 assumi a responsabilidade pela colecção de talha do acervo do Museu de Aveiro deparei com dificuldades a vários níveis: a par com o trabalho de inventário era também necessário reunir bibliografia específica sobre talha; era preciso pesquisar e reavaliar estudos feitos sobre a talha do museu dada a falta de registos acerca do seu passado e origem; era essencial criar-se um guia acerca do imenso puzzle que são as reservas e dotar o museu de meios técnicos humanos e materiais auxiliares na conservação das peças em exposição e em reserva.

Foi este o desafio lançado, e é este, por definição (Artº 2º dos Estatutos do ICOM, 1990), a função do Museu.

Tendo a colecção do Museu de Aveiro items de talha representativos dos principais períodos da escultura de madeira portuguesa, com concepções tipológicas determinantes e formulários escultóricos defini dores de produção de talha em oficinas regionais de marcenaria, entendo que o Museu pode ganhar uma nova valência como espaço dedicado ao estudo e divulgação pedagógica da talha, podendo articular esta sua acção dentro e fora de portas, ou seja, do Museu para a e na Cidade.

Esta ideia tem antecedentes na criação do Curso de Conservação da Talha (F.S.E./C.E.) que funcionou entre 1989 e 1991 e formou alguns técnicos. de restauro que ao longo do curso deram prova das suas qualidades. Por outro lado a cidade oferece uma vasta e qualificada panóplia de espaços em que a talha tem papel preponderante.

Assim tudo se parece conjugar para que / 15 / no Museu de Aveiro venha a ser instalada uma dinâmica de estudo/ensino, conservação, exposição, divulgação e sensibilização da sociedade de e para a talha a nível nacional.

É dentro deste espírito que se giza o seguinte projecto:

IDEIAS GERAIS PARA UMA 1ª FASE

1. Inserir no percurso museológico do museu uma área destinada à interpretação da talha em três momentos/espaços: o técnico; o formal; o simbólico.                           .

2. Propor ao público um percurso dentro do museu em que lhe sejam dados a ver e a entender alguns conjuntos (séries) de talha de acordo com uma sequência que terá como objectivo a verificação e rememorização pedagógica dos conteúdos da secção museológica definida em 1 (a série de retábulos das capelas do claustro, as séries de retábulos da Igreja de Jesus, a série de nichos da Capela de Nª Sª da Conceição, a série da Capela de Nª Sª do Rosário e do Senhor dos Passos, etc.) e, subsequentemente, a realização de um roteiro para apresentação geral dos conteúdos aliando-se-lhe a representação gráfica dos diversos elementos construtivos e compositivos.

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Nicho que alberga o conjunto escultórico representando Stª Ana
e a Virgem. Desenho de pormenor da pilastra interrompida por mísula, conhecida como quarteirão/quartelão. (p. 16)

   

Retábulo de altar.
Dedicado a
Santa Joana Princesa
 (p. 16)

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3. Sugerir documentadamente ao público um percurso para visita na Cidade dos 6 núcleos mais coerentes e significativos: Igrejas de Santo António e da Ordem Terceira de São Francisco, Igreja das Carmelitas, Igreja da Misericórdia, Igreja da Nossa Senhora da Apresentação (Paroquial da Vera Cruz), Igreja do Carmo e Igreja das Barrocas.

4. Este projecto não ficará completo sem um programa editorial específico onde registe com destaque um catálogo científico para o acervo do Museu, podendo este servir de guião à catalogação e registo de outros núcleos na cidade (tarefa a desenvolver numa 2ª fase).

Desenvolvimento (1ª fase)

1.1 O TÉCNICO – momento/espaço no qual são apresentadas as técnicas de execução da talha. Obviamente será impossível dissociar a técnica das opções formais do desenho e como tal deverão ser indiciados também os métodos de concepção. A exposição irá dar ao público a oportunidade de se familiarizar com os objectos e de avaliar a qualidade e prática do ofício. Assim deverão estar patentes os utensílios e as matérias-primas bem como exemplares em fases de execução diversas, sempre que possível estabelecendo uma postura inter-activa do público. Deverá também ser chamada a atenção para o facto de as técnicas e materiais condicionarem a forma e assim deverão estar presentes exemplares de finalidade idêntica e material diverso. Só assim será possível entender a autonomia formal que a talha adquire com o avanço do tempo no nosso país, tirando partidos que apenas a madeira permite.

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1.2 O FORMAL momento/espaço no qual a talha é explicada de acordo com a sua concepção e identidade formal (modelos/séries, relações com tratados e estampas, proporções canónicas, estilo, carácter erudito ou vernacular, etc.).

Orientada para o valor de uso e para a leitura integrada na concepção do espaço este momento contextualiza historicamente a talha incluindo e fornecendo dados sobre a funcionalidade e intencionalidade da sua produção, a sua ligação com a arquitectura, os seus artistas e encomendadores, a sociedade das épocas de origem, etc..

Tendo o edifício exemplares de várias épocas e escolas (avulta a produção de uma hipotética escola local), deverá funcionar como referencial pedagógico e suporte factual da exposição.

1.3 O SIMBÓLICO – momento/espaço no qual da talha é extraído o valor simbólico da representação figurativa. Esta leitura pretenderá treinar e sugerir ao observador a descoberta da mensagem que os elementos iconográficos visam transmitir: religiosidade, poder político e/ou económico do encomendador; liberdade criativa do artista, etc.

Poder-se-á também elaborar uma análise comparativa de formulários com carac­terísticas regionais estimulando a participação dos públicos de diversas proveniências na identificação/selecção desses elementos iconográficos. / 17 /

2. A visita deverá ser apoiada por meios modernos e inter-activos de legendagem que permitam estabelecer relações com a matéria exposta nos espaços de 1 e com exemplos exteriores ao Museu passíveis de avaliação em termos da sua evolução técnica, formal e iconográfica. / 18 /

3. Para o estabelecimento do percurso de. visita na cidade, será necessário obter o acordo das entidades responsáveis por estes núcleos, sendo o museu entendido apenas como entidade de divulgação e investigação deste património local. O museu deverá, no entanto, informar e facilitar o acesso aos meios existentes e disponíveis no campo da investigação, inventariação, conservação e recuperação.

O apoio dos Serviços Regionais de Aveiro do Instituto da Juventude será essencial no que diz respeito à colocação de jovens O.T.L. (projecto de Ocupação dos Tempos Livres) nos núcleos referidos, ficando à responsabilidade do Museu a preparação destes jovens para o desempenho das funções requeridas.

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Retábulo de altar.
Desenho da estrutura,
terminologia e disposição
dos elementos construtivos.
(p. 17)

 

 

Armário retabular do
Santíssimo Sacramento.
Desenho de pormenor técnico
(p. 17)

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Com a abertura dos espaços e a constatação do seu valor por parte dos responsáveis será dado o primeiro passo para a recuperação deste importante património, bem como de outro aqui não referido e de valor semelhante.

Observações Finais

Em face da oportunidade criada com a publicação deste Boletim, pareceu-nos ser este o local e o momento ideal para a divulgação deste projecto. O objectivo é o de se criarem dinâmicas de estudo, de conservação e de valorização da talha dentro e fora do Museu, intervindo-se também à escala da Cidade.

Ambiciona-se, através do projecto aqui esboçado, criar empatias na comunidade aveirense no âmbito deste tema; espera-se, de igual modo, que este conduza a uma especial sensibilização das entidades responsáveis pelos núcleos de talha em A veiro, no sentido de promoverem a comparticipação da população na salvaguarda deste património.

À AMUSA, os nossos mais sinceros parabéns pela iniciativa, desejando que esta se transforme num programa editorial com continuidade, onde se pontue e destaque o trabalho que se vem desenvolvendo nos vários vectores sócio-culturais que giram em torno deste Museu e da sua colecção.

Aveiro, 21 de Março de 1999

Maria da Luz Nolasco Cardoso

BIBLIOGRAFIA

BAZIN, Germain – Morphologie du Retable Portugais. Boletim da Academia Nacional de Belas Artes. Lisboa: Academia Nacional de Belas Artes, 1950. p. 18-19.

LAMEIRA, Francisco Ildefonso - 1º Congresso Internacional do Barroco: Separata das Actas. Porto: Reitoria da Universidade do Porto, 1991. voI. I.

ALVES, Natália Marinho Ferreira – A Arte da Talha no Porto na Época Barroca. voI. II, Porto: Arquivo Histórico da Câmara Municipal do Porto, 1989.

SMITH, Robert C.
            – A Talha em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 1962.
            –
The Portuguese Woodcarved Retable. Boletim da Academia Nacional de Belas Artes.
            2ª ed. Lisboa, 1950.

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* A Matriz deste texto é um projecto que foi apresentado à Direcção do Instituto Português de Museus em 1992.
 

 

 

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