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O SENHOR DA BOA VIAGEM

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Napoleão Mira

O Senhor da Boa Viagem. Ilustração de A. V. 2011 - Clicar para ampliar.

Levantou-se de manhãzinha ainda o sol era uma criança de berço. Tratou da higiene matinal em quase absoluto silêncio de modo a não despertar a sua Maria Antónia que, como quase todas as mulheres, tinha maus fígados matinais; da parte da tarde era uma jóia de pessoa, mas pela manhã não se podia aturar!

Olhou-se ao espelho, passou as mãos pelas rugas que mais pareciam regos e reviu em cada uma delas um episódio marcante da sua vida.

As primeiras, simbolizavam o nascimento dos filhos que lhe tinham calhado na lotaria da vida o que para o caso presente significava prémio dos grandes. Nove foram os filhos que Maria Antónia lhe dera e todos vivos graças a Deus.

Os outros sulcos que lhe marcavam a face representavam outros tantos episódios da sua vida. A ida à guerra logo em sessenta e um quando esta rebentou em Angola; a passagem a salto da fronteira à procura de vida melhor que a miséria por cá vivida; a epopeia dum campaniço por terras francesas, onde tudo era novo e estranho a começar pela língua.

Anos mais tarde nasceram-lhe ao canto de cada olho duas rugas de alegria: a primeira pela notícia do seu país finalmente libertado, a outra, por poder regressar e com as suas mãos contribuir para a construção desse Portugal Novo que acabara de nascer por vontade do povo a que pertence.

De ruga em ruga, de vinco em vinco, de sulco em sulco foi-lhe o tempo esculpindo o rosto. Hoje, Chico da Horta, como sempre foi conhecido, conta setenta e dois anos e outras tantas estórias vividas numa vida cheia de perigos e de aventuras.

Na Rotunda das Ovelhas em Castro Verde onde passa muitas das suas manhãs, já o não chamam assim; apelidaram-no de Primeiro de Abril, por não vislumbrarem muita verosimilhança nos relatos da sua vida. O narrador sabe que são todos verdadeiros, até porque foi ele que os criou, mas como não pode interagir com os companheiros de rotunda sob pena de manipular os personagens, só pode estar solidário com Chico da Horta que ultimamente se ensimesmou desde que desconfiou que os seus correligionários assassinos do tempo, não davam crédito às suas façanhas.

Estamos em Junho, os dias são os maiores do ano, logo, de manhãs claras e entardeceres serôdios, coisa que faz com que Chico da Horta considere ser esta a altura do ano que mais aprecia, daí não querer perder pitada dela, levantando-se logo o astro-rei dê de vaia lá para as bandas do montado.

Já se aperaltou para o passeio matinal. Não dispensa a bota alentejana que de dois em dois anos compra na feira de Castro ao mesmo sapateiro de sempre, um homem de Almodôvar que tem a reputação no nível BBB: Bom, Bonito e Barato!

Dantes não dispensava o colete tradicional que adornava com a corrente e o respectivo relógio de bolso, herança única de seu pai, coisa que o envaidecia de sobremaneira. Mas, desde que um tal Marroquino de seu nome Mohamed passou lá pela rotunda e lhe vendeu um colete de repórter de cor caqui pela módica quantia de seis euros muito regateados, que Chico não quer outra indumentária.

Antes de sair para a rua faz um check list a todos os bolsos verificando se nada lhe falta.

No bolso de cima não podem faltar: um pequeno bloco de notas e três esferográficas Bic de cores diferentes: verde, vermelho e preto. No bolso do lado contrário ao coração o inevitável telemóvel, para que Maria Antónia o possa avisar que as sopas estão na mesa para o caso de se atrasar, o que seria coisa rara, já que pontualidade britânica, não é só uma das suas qualidades, também é um dos seus grandes defeitos.

No pequeno bolso que lhe fica à altura de descansar o dedo polegar, o inevitável relógio de corrente que lhe confere uma espécie de ar aristocrático-popularucho. Noutro dos múltiplos bolsos do colete multifunções, os inevitáveis sacos plásticos dobrados em trinta voltas que cabem às dezenas no mais ínfimo espaço, não vá o diabo tecê-las e ter de fazer umas mercas e não ter onde transportar os haveres.

Num dos bolsos com fecho de correr é o lugar para o pente e para o espelho, um hábito desde criança enraizado e que Chico da Horta faz questão em cultivar. Se o pente é um banal pente de plástico, já o espelho é uma relíquia que guarda há muitos anos; trata-se de um espelhinho circular que tem na face não espelhada um jogo com duas balizas e uma pequena esfera metálica, jogo esse, com que engana a solidão a que cada vez mais está votado.

Num outro compartimento mesmo por baixo daquele dedicado ao relógio de seu pai, assim numa espécie de vizinhança de longa data, tem lugar assegurado a sua inseparável navalhinha, ferramenta que o tem acompanhado uma vida, tendo ido e vindo a Angola, passado por terras de França e nalguns apertos o ter safado de alguma tuna de porradas. A sua estima por tão apreciado objecto exige que a mesma, também esteja presa por uma corrente que lhe parte do cinto e termina na ditosa amiga de gume gasto pelo passar do esmeril e dos anos.

Para terminar em matéria de correntes só falta referir que também o porta-chaves é contemplado com uma, e assim, Chico da Horta, jamais sai de casa sem as sua três correias ao tiracolo.

Nos bolsos de dentro, portanto locais para as coisas íntimas, coisas do foro pessoal, é onde guarda duas carteiras. Ao lado direito a dos documentos e fotos dos que mais quer, mesmo que amarelecidas pelo tempo. Do outro lado, a do dinheiro que, vá-se lá saber porquê gosta de ostentar, daí andar sempre com quantias significativas, mas sempre em notas de vinte, dez e cinco euros para com o seu volume poder impressionar os poucos que com ele privam. Este bolso para além do fecho de correr é ainda reforçado com uma pregadeira não vá o raio do demo estar atrás da porta.

E para poder sair à rua só falta conferir uma coisa! Se no seu porta moedas de cabedal do género gaveta em forma de ferradura existem os trocos suficientes para o seu vício diário: o café e o jornal com as notícias frescas.

De tanto vestir o colete de fotógrafo, começaram a chamar-lhe de: Repórter X, não só pela vestimenta mas também pela gatafunhagem que faz com as diversas canetas no seu pequeno bloco. Conta-se até, que foi a este antropónimo camaleão que dois cidadãos viajando de automóvel de norte para sul, para passar o tempo vinham-se mutuamente questionando sobre o nome dos naturais das terras que atravessavam. Os de Lisboa era Lisbonenses, os de Setúbal Setubalenses e por aí fora. Quando estavam perto de Castro Verde não atinavam com o nome dos naturais desta vila. Um dizia que eram Campaniços, o outro teimava que eram Castroverdenses, foi já em plena Rotunda das Ovelhas que abeirando-se do permanente grupo de reformados aí presente que escolheram o Repórter X para serem esclarecidos.

Depois dos cumprimentos da praxe um deles disparou – " Amigo do colete com ar de quem sabe estas coisas. Diga-me lá como se chamam aqui os de Castro?

Chico da Horta, jogou com dois dedos a boina para trás, revelando a alva tez em comparação com o tom amorenado do resto da pele visível. Com os restantes dedos da mão coçava a dita testa em busca de resposta para tão invulgar demanda.

Depois de pensar e repensar deu-se por vencido e resolveu finalizar a questão replicando: - Eu sou conhecido por conhecer muita coisa e mesmo muita gente, MAS TODOS OS DE CASTRO, confesso que não sei!

A gargalhada foi geral. A resposta dada passou então a fazer parte do anedotário alentejano para regalo das hordas de urbanos semianalfabetos que gostam de pavonear a sua ignorância pelos mais inusitados lugares.

Os dias foram passando; as semanas sendo devoradas pelo calendário; os meses sucumbindo ao ciclo das estações e os anos: ainda mal desaparecia o cu dum já aparecia a cabeça do outro, fazendo do tempo um cavalo selvagem de crina ao vento que galopa sem cessar, marcando cada um deles um novo sulco na sua enrugada figura.

Com o tempo foi ficando cada vez mais retraído; mais taciturno; mais ensimesmado; até que, houve um dia em que deixou mesmo de falar tendo decidido passar a viver para dentro, para um mundo unicamente habitado por si e pelos fantasmas dos seus setenta e dois anos de vida.

Certo dia leu no jornal que um tal João Manuel Serra lá da capital, homem das suas idades que saía à noite de casa para com um aceno e um sorriso saudar os automobilistas que passavam, havia morrido subitamente.

Leu a bizarra história de vida deste homem e alguma coisa mexeu com ele. Como se fosse comandado por essa estranha força chamada destino, sentiu um apelo vindo lá do fundo das entranhas; uma espécie de encarnação; uma metamorfose; um tipo de passagem de testemunho e passou a vestir a pele, a assumir o papel de senhor do adeus.

A partir desse dia abandonou o ar de desiludido da vida e passou a sorrir, a dar de vaia e desejar boa viagem a cada carro que passa na Rotunda das Ovelhas, alegrando assim a praça com o despropósito do seu repetido gesto.

Agora, já não é Chico da Horta; nem Primeiro de Janeiro; nem Repórter X.

Hoje em dia, todos os que por ali passam, lhe devolvem o aceno e o sorriso chamando-o carinhosamente de: Senhor da Boa Viagem.

 

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