Raios os partam! Apetece
dizer: “raios os partam!” – é um desabafo e é um protesto, é a mais
pacífica das manifestações de raiva com que um cidadão concretiza o seu
direito à indignação. Haver alternativas a este “raios os partam”, lá
isso há. Por exemplo, partir o focinho aos responsáveis pela castração
da identidade cultural do nosso povo? Aos responsáveis pelo miserável
abastardamento da nossa cultura? Por exemplo, pôr bombas na sede e nas
delegações da famigerada ASAE, quase “prima” da asquerosa PIDE que,
durante décadas, perseguiu e torturou portugueses? Seria excessivo,
dir-me-ão. Talvez.
ASAE – logo a sigla enoja e enjoa. O que faz, para o que serve? Serve
para atazanar os nossos costumes. Nas aldeias e vilas, até há pouco,
matava-se o porco – era dia de festa, com sopa da matança (no Sul) ou
cabidela (no Norte), carnes no alguidar para preparo de enchidos ou para
apetitosa fritura, que nalguns lugares recebia o nome de “carne às
Mercês”. E aproveitavam-se os pernis para os presuntos ou as queixadas
para as caxaburras. E o sangue para as morcelas.
Veio a ASAE, com modos de lápis azul do “antigamente” e zás!, proibiu. A
matança foi varrida dos costumes – ficaram as amplas chaminés
alentejanas despropositadas para os fumeiros. Dia virá que os nossos
netos perguntarão, intrigados, para que serviam as grandes chaminés das
velhas casas. E saberão que se cometeu o crime de proibir ao povo os
dias de festa e abundância. E saberão que, à força da multa e da
punição, os seus antepassados viram-se privados do “petisco”. Saberão
que lhes foi vedado deliciarem-se com os enchidos caseiros. Saberão que
se viram impedidos de mastigar túbaros, de frigir torresmos do rissol,
de colher espargos selvagens e com eles se prazentarem em saborosos ovos
mexidos. Saberão também que, assassinando a nossa cultura gastronómica
(parte fundamental da cultura genuína do povo), a tenebrosa ASAE
escancarou a importação de enchidos e presuntos estrangeiros, feitos a
martelo, de consumo quase obrigatório entre nós, à falta de produto
nacional, entretanto clandestinizado.
Se lhes explicarem, os nossos netos saberão também que tudo isso
aconteceu à mistura com a disseminação da cultura da maricagem, com a
qual os donos do poder – em inícios do século XXI – quiseram defenestrar
a virilidade de um povo indócil e indómito, que se recusava a abdicar
dos seus direitos e da sua dignidade.
Poderão ainda saber que essa PIDE de costumes, a ASAE, enquanto (em nome
de uma saúde pública que, antes, nunca estivera em causa) xingava a
nossa cultura, fechava os olhos à insalubridade dos “mac’donalds” e das
pizzarias, onde à farta e com lucro, se cometiam verdadeiros crimes
contra a saúde pública. Poderão também saber que se profanou o bom
azeite nosso, proibindo a designação da origem e a explicitação do grau
de acidez, num descarado convite à mixordagem.
E perguntar-se-ão os nossos netos: como é que tudo isso foi possível,
sem protestos, sem revoltas? Nem eu sei, meus caros. A verdade é que
fomos capazes de enfrentar a repressão fascista, de combater a
exploração, de bater o pé à opressão, mas sucumbimos às balelas trazidas
por interesses estrangeiros que varreram das rádios a nossa música,
puseram as nossas televisões a falar inglês/americano e brasileiro,
fecharam as nossas editoras de livros, encerraram as nossas fábricas e o
nosso comércio, compraram os nossos jornalistas e proibiram que as
nossas bocas se deleitassem com os sabores nossos.
Perante isto, só sei dizer: “raios os partam!”
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