«Breve explicação
Durante este ano de 1985, comemorou-se o 150º Aniversário da nova
divisão administrativa e eclesiástica de Aveiro, pelo qual as quatro
freguesias da cidade ficaram reduzidas a duas; consequentemente,
pelos mesmos documentos de então, foram suprimidas as freguesias de
Nossa Senhora da Apresentação, do Espírito Santo, e de S. Miguel. A
primeira foi incorporada na da Vera-Cruz; as outras duas foram
simplesmente suprimidas, para darem lugar à de Nossa Senhora da
Glória.
O facto proporciona-nos uma série de breves apontamentos sobre a
história das freguesias da vila e da cidade de Aveiro, que foram
publicados no semanário "Correio do Vouga", nos números 2756-2759,
de 18 e 25 de Outubro e de 1 e 8 de Novembro de 1985. Este opúsculo
é uma separata dos mencionados apontamentos.
Aveiro, Novembro de 1985.
/ pág. 15 /
1 — Uma única freguesia
Desde os tempos da Reconquista Cristã e da reorganização da Igreja
no território de entre os rios Douro e Mondego, o povoado de Aveiro
constituía uma única freguesia, cuja matriz era a igreja de S.
Miguel. Construída certamente nos finais do século XI por iniciativa
de D. Sisnando, conde de Coimbra e vassalo de
D. Fernando Magno, rei
de Leão, o primeiro edifício erguia-se num outeiro relativamente
elevado, onde talvez tenha existido uma fortificação e uma mesquita.
Sobranceiro ao mar, que por aí entrava e formava uma comprida baía
com diversos braços — entre os quais o que se prolongava até ao
Marnel — o incipiente "Alavário" era um lugar avançado da região
conimbricense, voltado para o norte. Nos seus arredores, já nos
meados do século X, a Condessa Mumadona Dias possuía terras e
salinas, que por doação de 26 de Janeiro de 959, doara ao Mosteiro
de Guimarães.
A igreja de S. Miguel — dedicada a este Arcanjo que se tinha por
defensor dos cristãos contra as arremetidas do demónio e nas lutas
contra os sarracenos — merece uma referência especial. Era o mais
antigo monumento de Aveiro, reconstruído e ampliado diversas vezes
ao longo dos séculos, uma das quais em 1420 por ordem do Infante D.
Pedro. Embora de uma só nave, era grande e construída de pedra e
cal. Situava-se na actual Praça da República, onde hoje se ergue a
estátua de José Estêvão, sendo a porta principal voltada para poente
e a capela-mor ombreando a rua da Costeira. As paredes, à data da
demolição em 1835, encontravam-se cobertas de azulejo, pelo
interior. A torre esguia, um tanto arruinada, ostentava três sinos e
uma sineta. Possuía duas sacristias, um púlpito de grade de pau
preto torneado, onze altares votivos, e o baptistério com pia de
pedra branca lavrada. O altar-mor, com retábulo de talha dourada,
era dedicado ao Titular, cuja última imagem, estofada e dourada, se
encontra presente na catedral. Anexa ao templo era a capela de Santo
Ildefonso, primeira sede da Confraria de Nossa Senhora da
Misericórdia, fundada em 20 de Agosto de 1506, cujo primeiro
"Compromisso" tem a data de 11 de Dezembro de 1519. No adro,
levantava-se uma capela em estilo gótico, dedicada à Mártir Santa
Catarina, e outra consagrada a Santo António; esta, em frente da
cadeia — que era nos baixos dos Paços do Concelho — tinha uma porta
com a largura necessária para, aberta, os presos poderem ver e ouvir
Missa em todos os domingos e dias santos.
2 — Quatro freguesias
No século XVI, a região de Aveiro continuava dentro dos limites da
Diocese de Coimbra, que para o norte se estendia até ao rio Antuã
que corre ao lado de
/ pág. 16 / Cambra, de Oliveira de Azeméis e de
Estarreja. A partir de 1545, presidiu ao Bispado
D. Frei João
Soares, frade agostiniano, que participou no último período do
Concílio de Trento; terminando este em 1564, o prelado foi em
peregrinação ao Santo Sepulcro, em Jerusalém, e regressou a Coimbra.
Vinha decidido a pôr em prática, tanto quanto lhe fosse possível, a
reforma pastoral decretada pela magna assembleia tridentina.
D. João Soares tratou logo de fazer uma visita às freguesias da sua
Diocese; para a preparar, mandou previamente que se fizesse o
recenseamento da população de cada uma. Por ele se achou que Aveiro,
em 1572, tinha 11.365 pessoas de comunhão; o bispo reconheceu ser
excessiva tal população para uma só freguesia e determinou dividir a
então vila em quatro paróquias. Como a igreja de S. Miguel pertencia
ao padroado da Ordem de S. Bento de Avis, tal divisão não se podia
fazer sem o rei ser consultado; ele era o grão-mestre da mesma
Ordem. D. Sebastião anuiu logo e deu a autorização pretendida. O
prelado, por provisão de 10 de Julho de 1572, parcelou o território
nas seguintes freguesias: São Miguel, composta pela quase totalidade
da vila muralhada e pelo bairro do Alboi, a ocidente; Espírito
Santo, que agrupava uma parte da vila muralhada com os Conventos de
S. Domingos, de Jesus e de Santo António e se estendia para sul,
compreendendo o Cimo de Vila, Vilar, São Bernardo, Santiago e parte
da Presa e da Quinta do Gato; Nossa Senhora das Candeias ou da
Apresentação e Vera-Cruz, ao norte do canal central da ria, aquela
para poente e esta para nascente. À freguesia da Apresentação
pertencia ainda todo o território da ria desde a "cale da vila" até
ao canal de Ovar (São Jacinto era da jurisdição de Ovar), e a
Vera-Cruz tinha dentro dos seus limites os Conventos do Carmo e de
Sá e alargava-se por parte da Presa e da Quinta do Gato. Depois
desta divisão, a freguesia de S. Miguel ficou com cerca de 4.500
habitantes e cada uma das outras com 2.500. A velha matriz manteve
para si a parte mais nobre da vila, a mais distinta e a mais
favorecida de fortuna; haviam-lhe escapado, porém, os três Conventos
das Ordens Mendicantes de S. Domingos e de S. Francisco.
3 — Duas freguesias
Nos princípios do século XIX, notava-se que a velha divisão do País
se tinha tornado anacrónica e incompatível com as necessidades
sociais. Logo na Constituição de 1822 se futurava a divisão do
território em distritos e o modo de neles se fazer a administração
judicial, política e civil. A Carta Constitucional de 1826 manteve
tal projecto. Passados anos, em 1833, o território nacional era
dividido em oito províncias: — Minho, Trás-os-Montes, Douro,
Beira-Alta, Beira-Baixa, Estremadura, Alentejo e Algarve; estas
foram subdivididas em comarcas, que, por sua vez, o foram em
concelhos. A comarca de Aveiro ficou situada na
/ pág. 17 /
província do Douro. Por se verificarem graves inconvenientes na
divisão provincial, que eram circunscrições administrativas
demasiado extensas, abolir-se-ia tal divisão com esse carácter em
favor da divisão distrital, subdividida em concelhos. Assim, em 18
de Julho de 1835, o Governo fez publicar um decreto, com base na lei
de 25 de Abril anterior, fixando em dezassete o número de distritos
no continente português e indicando os nomes das suas capitais; em
25 seguinte, seriam nomeados os respectivos governadores civis. O
distrito de Setúbal viria a ser criado em 1926. Após a instituição
do distrito de Aveiro e da entrada em funções de
José Joaquim Lopes
de Lima, seu primeiro responsável, foram as quatro freguesias da
cidade reduzidas a duas, por alvará de 11 de Outubro de 1835,
assinado pelo governador civil; publicado o documento, foi ele
remetido ao bispo da Diocese, D. Manuel Pacheco de Resende, que se
teve de conformar com tal resolução e, atendendo às razões expostas
no mesmo alvará, mandou passar a respectiva portaria com data de 13
de Outubro, para início do processo no foro eclesiástico. Por esta
forma, constituir-se-ia, ao norte do canal central da ria, a
freguesia da Vera-Cruz e, ao sul, a de Nossa Senhora da Glória; o
bairro de Sá era incorporado na primeira das paróquias. Fora extinta
a de Nossa Senhora da Apresentação, por um lado; e, por outro, as de
S. Miguel e do Espírito Santo davam lugar à de Nossa Senhora da
Glória, criada de novo. A matriz da freguesia setentrional continuou
na igreja da Vera-Cruz, que existia no actual largo do Capitão Maia
Magalhães. Dezenas de anos depois, pensando-se em construir um novo
templo, iniciou-se no mesmo sítio uma outra edificação que não
chegou a concluir-se e foi demolida em 1945. O centro religioso,
transferido provisoriamente para a igreja de Nossa Senhora da
Apresentação, lá acabou por ficar com carácter definitivo. A
paróquia meridional, que recebeu o nome de Nossa Senhora da Glória —
talvez para honrar também a Rainha D. Maria da Glória, que não
apenas a Mãe de Cristo — passou a ter como sede a igreja do extinto
Convento Dominicano de Nossa Senhora da Misericórdia. Quanto à
vetusta igreja de S. Miguel, essa foi sacrificada pelo camartelo
demolidor. O aludido governador civil, a pedido de certos políticos
influentes, sentenciou a sua destruição, não fosse o nome do Titular
lembrar perpetuamente o do rei proscrito; e a demolição iniciava-se
ainda em Outubro de 1835, poucos dias depois de extinta a freguesia.
Antes, em 18 de Outubro, haviam sido conduzidos, em procissão e com
todo o respeito, as principais imagens deste templo para o de S.
Domingos. O acto foi precedido com um sermão em que o orador
procurou demonstrar que a destruição da igreja não tinha sido
ordenada por ódio ou desprezo da religião, incentivou os presentes a
acompanhar o cortejo que se ia fazer, e lembrou ao povo que se
deveria conformar com as determinações da autoridade, com o
progresso dos tempos e com os bons desejos de muitos habitantes de
Aveiro. Apesar destas palavras, numerosos ouvintes derramaram
lágrimas e interromperam o discurso com alaridos,
/ pág. 18 / protestando assim contra a demolição de um templo, digno de
respeito por muitos títulos. Por sua vez, a igreja do Espírito
Santo, no largo que hoje tem o nome de Luís de Camões, foi
considerada inútil e votada ao abandono; porque ameaçava ruína,
acabou por ser profanada em 31 de Janeiro de 1836. As imagens foram
conduzidas ocultamente para a nova igreja paroquial; e, em 1841, foi
apeado o cruzeiro, muito semelhante ao de S. Domingos, que se
levantava a pouca distância do templo. Depois de dúvidas continuadas
sobre a sua conservação, a Câmara Municipal de Aveiro, de acordo com
a Junta de Paróquia, determinou, em 10 de Fevereiro de 1858, que
fosse demolida — o que se efectuou daí a pouco. Os materiais
empregaram-se na construção da torre da igreja de Nossa Senhora da
Glória. Para que a decisão de Outubro de 1835 tivesse legalmente a
completa execução canónica, o bispo de Aveiro, em 7 de Março de
1836, mandou passar nova Provisão. Aí se declarava e confirmava que
o Padre Manuel Rodrigues Tavares de Araújo Taborda ficaria pároco da
freguesia da Vera-Cruz, atendendo a que o mesmo eclesiástico tinha
servido mais de trinta e seis anos a extinta paróquia de Nossa
Senhora da Apresentação; e que o
Padre António Dias Ladeira de
Castro, por sua vez, seria o pároco da freguesia de Nossa Senhora da
Glória, por ter estado na de S. Miguel por mais de vinte e seis
anos.
4 - Novas freguesias
A criação e o alargamento de uma rede de escolas dos diversos níveis
de ensino, a restauração da Diocese de Aveiro, a abertura e o
melhoramento da barra nova, a situação e o progresso do porto, o
lançamento de estradas, a passagem do caminho de ferro e o
desenvolvimento de outros meios de comunicação, aliados decerto ao
espírito de iniciativa e de aventura dos aveirenses, foram causas
decisivas da evolução industrial, comercial e demográfica de toda a
zona, nomeadamente da cidade de Aveiro e do seu concelho.
Por isso, os responsáveis da Igreja e as autoridades do Estado, indo
ao encontro das aspirações do povo, têm sentido a necessidade de,
respectivamente, instituir novas paróquias para melhor servir a
comunidade católica e criar novas freguesias administrativas para o
interesse e bem-estar dos cidadãos.
A "Costa de São Jacinto", com a secular ermida de Nossa Senhora das
Areias, pertenceu, desde tempos antigos, à freguesia de S. Cristóvão
de Ovar; o seu território estendia-se mais ou menos naquela restinga
de areia, conforme a posição flutuante da barra. Contudo, em 1856,
tanto civil como eclesiasticamente, São Jacinto foi anexada à
freguesia da Vera-Cruz. Com efeito, o bispo do Porto, D.
António
Bernardo da Fonseca Moniz, seguindo a portaria do Governo de EI-Rei
D.
/ pág. 19 / Pedro V, de 10 de Setembro desse ano, em documento de
22 do mesmo mês fez cessar a jurisdição que o pároco da freguesia de
Ovar exercia sobre os habitantes da "Costa de São Jacinto",
transferindo-a para o pároco da Vera-Cruz, da Cidade e Diocese de
Aveiro. Mas era sumamente custoso manter a ligação religiosa e
administrativa da povoação de São Jacinto com a matriz paroquial e
com os órgãos autárquicos da freguesia urbana da Vera-Cruz; a ria e
a distância não são fáceis de transpor e obstam à unidade. Além
disso, a localização de uma base aérea militar e a instalação de uns
estaleiros para construção naval tinham dado um decisivo impulso ao
núcleo inicial, constituído quase só por pescadores oriundos de uma
colónia murtoseira. Por isso, o prelado de Aveiro, em 3 de Fevereiro
de 1953, deu-lhe autonomia eclesiástica, sendo seguido pelo Governo
da República em 16 de Fevereiro de 1955, o qual constituiu São
Jacinto como freguesia, separando-a da Vera-Cruz. Também a freguesia
da Glória foi demograficamente progredindo para o sul; no meio de
terrenos agrícolas, surgiram e continuavam a surgir variadíssimas
habitações, num raio equidistante da velha ermida de São Bernardo.
Já vinha de há muito a aspiração de independência religiosa desta
zona; certas pessoas influentes concentravam em si o desejo do povo
e faziam-no chegar à autoridade diocesana. O processo demorou 4
anos, com seus recuos e avanços. Contudo, chegaria a almejada hora;
foi em 4 de Julho de 1955 que
D. João Evangelista de Lima Vidal
instituiu a paróquia de São Bernardo. Em 18 de Janeiro de 1969 o
Governo da Nação dar-lhe-ia a independência administrativa. Assim,
esta freguesia pôde talhar com decisão o seu próprio destino,
criando e mantendo diversas estruturas que respondem aos anseios de
solidariedade, de formação, de cultura e de desporto, para os
diversos estratos sociais da população. Numa outra área territorial,
entre campos e florestas, começara a desenvolver-se, em todos os
quadrantes, uma nova zona populacional; existiam por aí os antigos
povoados da Presa, da Quinta do Gato e do Viso, com seus anexos,
divididos pelas freguesias de Esgueira, da Glória e da Vera-Cruz.
Tornara-se urgente dar unidade jurídica àqueles que convivam, nas
mesmas ruas e nos mesmos espaços geográficos; eram parcelas de
comunidades dispersas. Cativadas pela memória e pela figura da
Princesa Santa Joana, estas pessoas, a pouco e pouco, começaram a
sentir o desejo de se aproximarem umas das outras; pressentiam que,
numa união de vontades, seriam mais fortes para a realização das
aspirações colectivas. Também o bispo de Aveiro foi ao seu encontro,
as incentivou, e, por fim, deu-lhes a autonomia religiosa, em 11 de
Novembro de 1969; mais tarde, precisamente em 30 de Novembro de
1984, a Assembleia da República votaria a lei que criou a freguesia
de Santa Joana, a qual foi promulgada em 29 de Dezembro e publicada
em 31 seguinte, deste mesmo ano. Não ficará por aqui, certamente, o
progresso de Aveiro, mercê da sua situação geográfica e graças ao
espírito animoso dos seus habitantes. A melhoria da barra, a
ampliação do porto, a proximidade da
/ pág. 20 / auto-estrada do
norte e a via-rápida para Vilar Formoso e para o centro da Europa
serão meios preciosos para um maior crescimento não só da cidade de
Aveiro e do seu município, mas também de toda a região da Ria, e
mesmo de todo o território que do rio Douro se espraia até ao rio
Mondego.»
Monsenhor João Gonçalves
Gaspar, Aveiro e as
suas Freguesias — no sesquicentenário da freguesia de Nossa Senhora
da Glória,
in; "Correio do Vouga", n.ºs
2756 a 2759 de 18 e 25 de Outubro e de 1 e 8 de Novembro de 1985.
●●●
Por este texto de escrúpulo e rigor histórico ficamos a saber o
essencial de génese da freguesia da Nossa Senhora da Glória, lídima
herdeira da primeira freguesia que Aveiro comportou: a freguesia de
São Miguel.
A que teve como sé a destruída igreja de São Miguel.
Destruição que se não ficou por aqui, como tivemos oportunidade de
ler em Monsenhor João Gonçalves Gaspar.
E que se não quedou nos outros templos destruídos por razões que nem
sempre tiveram a ver com a sua vetustez, como também o académico
historiador muito intencionalmente deixa alinhavado.
Razões políticas, nos casos de destruição de templos.
Razões económicas, na maior parte dos edifícios civis.
Incúria e ignorância, em tantos mais.
Recupero, porque acho pertinente, texto que escrevi já há anos,
quando do centenário de Almada Negreiros, um dos maiores artistas
portugueses deste século e de quem o Tribunal de Aveiro guarda (?)
preciosa tapeçaria ainda hoje à espera de cuidadoso trabalho de
manutenção.
Aí vai, mantendo o título, pois que também o continuo a considerar
adequado.
|